quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Percepção e predictabilidade

Esse passo do livro - capítulo 12 - é um dos mais inteligentes. Consolidada a tese de que a percepção musical é baseada no reconhecimento de certos padrões estatísticos, ele examina então a relação desses padrões com os vários tipos de memória mantidos pela mente. Todos estamos a par de que possuímos vários tipos de memória, localizadas em locais diferentes do cérebro. A chamada memória "episódica", por exemplo, que indexa versões dos acontecimentos vividos. Ela é a responsável pela codificação das melodias que ouvimos muitas vezes. Outro tipo de memória é a semântica, que registra esquemas gerais. Há ainda a memória de curto prazo responsável pelas expectativas relacionadas à dinâmica musical e a chamada memória de trabalho, responsável pelas expecativas conscientes com respeito à estrutura da música.

São esses vários tipos de memória, com seus dispositivos emocionais específicos, quer permitem uma experiência sempre renovada da música, apesar de suas estruturas repetitivas. Cada compositor, cada executante tem à sua disposição uma ampla variedade de surpresas a ser misturadas e testadas. Por isso ouvimos uma mesma música e sentimentos sempre que há algo novo: porque o registro mental da experiência musical é sempre essa mistura de expecativa cumprida e surpresa controlada.

Predictabilidade é o assunto do capítulo 13. Ele consolida o material que examina as modalidades formais que pode assumir a repetição do material musical, partindo de um fato estatístico trivial e conhecido: mais de 90% da música que vc ouve, você já ouviu. Então ele descreve a obediência a esquemas de produção da antecipação melódica, rítmica e à regularidade dos esquemas harmônicos.

Com o uso de uma ampla amostra de música barroca ele mostra, por exemplo, que o acorde V será seguido pelo I em 79% dos casos; o inverso é registrado em 38% dos casos:

"Em geral, peças individuais de música popular fazem uso de menor variedade de acordes do que é típico da música barroca. Não é incomum para uma melodia pop emprega apenas dois ou três acordes diferentes. Contudo, música popular em geral recorre a uma palheta mais variada de acordes. Aproximadamente 30% dos acordes de música pop são sétimas ou nonas, comparados aos 15% da música barroca.. (... ) Outra diferença significante entre a harmonia barroca e a pop é o uso de inversões de acordes. Aproximadamente um terço de todos os acordes na música barroca não estão na posição de raiz, enquanto apenas 10% dos acordes pop são invertidos (... ) com maior variedade de progressões harmoônicas, alguém poderia supor que a harmonia pop é menos previsível que a barroca. Isso é verdade para a zero-ésima e para a primeira probabilidade do acorde, mas não para transições de ordem superior. A maior parte das harmonias pop empregam uma progressão de 4, 6 ou 8 acordes que é repetida cíclicamente, de acordo com a estrutura das estrofes (...) Na verdade, a reduzida predictabilidade esquemática das progressões harmônicas do pop são compensadas por sua elevada predictabilidade dinâmica das progressões" (págs 252-253).

domingo, 21 de novembro de 2010

Intenção estética

Nesse ponto, capítulo 11, Huron generaliza e consolida todos os indícios experimentais do apredizado estatístico do ouvinte, suas expectativas harmônicas, tonais e rítmicas, no conceito de esquema. A idéia não é dele (a fonte é Gjerdingen, 1988, "Um volteio clássico da frase: música e psicologia da convenção") e pode ser descrita como um determinado conjunto percepetual que permite a cada ouvinte "reconhecer" e distinguir melodias e gêneros.

"Sem esquemas musicais, ouviríamos obras que se parecem mais ou menos, mas não haveria fronteiras, nem classes de obras. Expectativas específicas de cada peça emergiriam para peças individuais, mas os ouvintes experimentariam todas as músicas usando um único conjunto expectacional. Expectativas harmônicas, melódicas e rítmicas representariam "grandes médias" de toda a experiência musical de um ouvinte. (pág 217).

"A disposição do cérebro de encapsular o conhecimento em diferentes domínios torna possível para músicos diferenciar estilos e gêneros (notem que o sentido aqui é fisiológico, não cultural...). A importância musical de tal conhecimento encapsulado não deve ser subestimada. Para o historiador e o etnomusicólogo, a disposição do cérebro de segregar domínios específicos do conhecimento é certamente uma causa de alívio. Se esquemas de audição não existissem, um etnomusicólogo ocidental nunca seria capaz de experimentar música de outras culturas sem a intereferência constante dos hábitos de audição do Ocidente. Da mesma maneira, sem esquemas, historiadores não poderiam experimentar as hemiolas dos motetos latinos da Renascença sem serem impressionados por sua experiência com as síncopes audaciosas do jXXz moderno.." (pág 217).

O livro revela grande honestidade intelectual. O Huron, acho eu, queria criar um framework científico para analisar certas experiências mudernas com música (nomeadamente wagner, xonberg e Strawinsky) e mostrar qual a razão propriamente percepcional para as "novidades" que traziam. Conforme foi consolidando o material experimental e estatístico, uma coisa ficou óbvia: a estrutura da música ocidental é basicamente repetitiva, baseada em um número reduzidíssimo de mecanismos, justamente porque se ajusta à necessidade evolucionária do organismo - ou seja, percepções familiares e previsíveis.

Aí a porca torce o rabo: os três citados criam justamente uma estética baseada na negação ou não cumprimento dessas expectativas. O Huron fica numa tremenda saia justa para evitar a conclusão inevitável: essa música não apenas tem uma intenção estética esquisita (ser diferente), mas produz uma reação fisológica negativa. Ou seja, não é apenas ruim; faz mal.

Aprendizado estatístico

No capítulo 8, ele trata do "efeito exposição", documentado há mais de um século. Quanto mais ouvimos uma melodia, mais gostamos dela: pelo mero efeito psicológico dela perder a "novidade". Ou seja, tanto por sua estrutura repetitva, quanto por nossa relação com os estímulos sensoriais, tendemos a gostar da música que é conhecida ou que obedece a nosso padrões de previsão.

No capítulo 9, Huron tenta identificar, com sua metodologia, as razões de associarmos qualidades aos tons da escala (tônica, mediante, dominante, etc...). Em sua opinião, quase todas essas qualidades estão diretamente ligadas ao aprendizado estatístico da música e de sua padrão repetitivo. Em uma amostra de 65 mil notas, de uma ampla base de dados de melodias em escalas maiores, o sol é de longe a nota mais usada, seguida pelo mi e pelo dó. Nas escalas menores (25 000 notas computadas), o perfil muda um pouco com a inclusão do Fá, mas Sol, Mi e Dó continuam sendo as notas mais usadas.

Ele repete o procedimento estatístico para as sucessões e cadências. O resultado é praticamente o mesmo: a imensa maioria das melodias têm a mesma organização básica. As qualidades que associamos às tonalidades (força, resolução, irresolução, etc) estão diretamente relacionadas às nossas expectativas, formadas por nossa exposição "estatística" à música.

O teste final é expor ouvintes ocidentais e balineses a melodias balineses. Os ocidentais consideram "adequadas" as notas sucessivas quando se adaptam aos padrões estatísticos da música ocidenteal; os balineses têm expectativas tonais completamente diferentes. A apreciação da tonalidade e de seu uso musical é fruto de aprendizado.

No que se refere ao "aprendizado estatístico" do tempo (assunto do capítulo 10), o argumento do Huron (ele mesmo reconhece...) é relativamente trivial. Como é fácil antever, a imensa maioria das melodias ocidentais obedece a alguns poucos padrões rítmicos. Na amostra analisada por Huron (+ de 10 mil melodias) os tempos simples, duplo e triplo, respondem por cerca de 60% do universo. Tempos irregulares (5/4, 7/8, etc) perfazem apenas 0.8% da amostra. Os experimentos com ouvintes, portanto, produzem resultados quase óbvios: a resposta fisiológica é sempre a mesma, quanto mais "conhecido" o tempo, mas fácil a previsão da próxima batida e maior a satisfação.