domingo, 25 de julho de 2010

Salomon Franck

Em Weimar, Bach tem a oportunidade de travar uma relação direta com um poeta envolvido na transformação da cantata alemã na cantata madrigalesca: Salomo Franck (6 de março de 1659 – 11 de julho de 1725). Além disso, Franck, pela sua formação e história pessoal, era um artista bem mais sensível aos temas pietistas, como a ternura pessoal por Jesus, a contemplação da morte, etc. Tagliavini sugere outro aspecto importante: como a transição na obra de Franck se consuma justamente em Weimar e provável que tenha sido as próprias demandas de Bach que o levaram a adotar o modelo Neumeister.

Se for isso verdade, não apenas a cantata bachiana está na "vanguarda" da adoção da nova forma poética-musical, como ele mesmo é um instrumento dessa transformação, demandando textos com um formato específico. Ou seja, seria mais um desmentido documentado da habitual afirmação de que Bach simplesmente "aceita formas anteriores", é um "artista conservador" e outras formas de mitologia musicológica romântica, sem maior informação histórica. Bach, que ao mesmo tempo está promovendo a introdução dos modelos vivaldianos do concerto nos meios culturais alemães, está, com seu trabalho junto a poetas importantes, também alterando a configuração da poesia alemã.

Tagliavini sustenta ainda que Franck oferece a Bach um modelo estético que permite conciliar a ortodoxia doutrinária luterana com os temas pietistas, trabalhando naquele território complicado entre religião oficial, movimentos de reforma religiosa, aceitação da arte secular na liturgia, etc. Dos grandes libretistas de Bach, Franck seria aquele com maior afinidade espiritual com o Mestre, ressaltada pelo tratamento similar que ambos dão ao tema da morte como salvação*. Por sinal, ambos tiveram uma vida marcada por eventos trágicos.

* recomendo o texto de Spitta sobre BWV 31. Uma obra prima literária-teológica.

sábado, 24 de julho de 2010

Duas notas adicionais

1. É claro que a hierarquia via o assunto com suspeita e as correntes calvinistas e pietistas condenavam a novidade. Neumeister polemizou com ambos por anos e anos, às vezes com violência. O argumento em defesa da música instrumental vinha da própria Bíblia, em linhas muito similares às anotações de Bach na Bíblia de Calov;

2. Bitter, esse biógrafo de Bach "recém-descoberto", levanta, inclusive, uma conexão surpreendente: Lorenz Mizler, em correspondência com Neumeister, defende mesmo uma organização formal das partes da Cantata. Bitter suspeita que é João Sebastão que está por trás da "forma" sugerida.
Há aqui uma consequência interessante. O formato "pessoal" da cantata bachiana vem diretamente da literatura profana: o madrigal italiano e as técnicas operísticas. Neumeister, um sujeito cuja religiosidade está acima de qualquer suspeita, tomou esse modelo de empréstimo e trouxe para a cultura religiosa alemã uma modo "individual" de expressão poética.

Sigo achando o capítulo do Tagliavini sobre Neumeister um excelente moderador de conceitos. Principalmente, o malsinado "inovador". Afinal, Neumeister introduz na literatura alemã algo que não existia e  permite a inversão da prática histórica sobre a relação entre música e texto. Antes, a música seguia o texto; agora, o texto pode ser moldado à música. Também altera as fronteiras entre poesia sacra e profana.

Em suma, Neumeister é "revolucionário" para usar o blá-blá-blá moderno sobre arte. Em que livro de história se lê tal coisa? Em que livro se lê que João Sebastião, compondo a BWV 61, está na vanguarda (sic) da música e da literatura alemã??

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Neumeister

Tagliavini (Studi sui testi delle cantate sacre di J. S. Bach) é um clássico da scolarship bachiana, mesmo tendo sido publicado em 1956. Ele já tinha acesso aos estudos de datação das partituras de Schering e Durr e Tagliavini é um especialista em literatura germânica. Não lê traduções, conhece todas as fontes. Começa documentando a origem musical e literária da cantata bachiana, a partir do madrigal italiano e do moteto alemão. Musicalmente, ambas as formas tinham problemas para a liturgia: o madrigal, poesia em versos de métrica livre, tinha origem secular; o moteto alemão usava apenas os versículos da Bíblia ou os hinos protestantes. A hierarquia religiosa desconfiava do madrigal e o uso da Bíblia ou dos hinos impunha limitações à criação musical. Ela ficava limitada à métrica e à organização estrófica dos hinos.

Era preciso, portanto, um criador, um poeta que fosse capaz de tratar dos temas religiosos com habilidade, dentro das formas mais adaptadas ao uso musical (inclusive com o uso de recursos considerados operísticos, como o recitativo e o da capo). O nome desse artista é Erdmann Neumeister, o pastor de Hamburgo, autor de boa parte dos textos da cantatas de Telleman e que publica suas obras a partir de 1716.

Essa data é um bom lembrete sobre a inadequação da classificação de Bach como um "artista conservador". Quando Bach começa a compor cantatas em Weimar, a "cantata nova" é uma novidade top de linha, assim como a música de Vivaldi. Um dos melhores exemplos dessa produção é a BWV 61, com sua mistura de coros brilhantes, recitativos bíblicos e árias espetaculares.

Bach, musicando poemas de Neumeister, está, na verdade, na linha de frente da mudança na música litúrgica protestante e também na literatura em língua alemã. Os "madrigais" do poeta de Hamburgo talvez representem, na verdade, um novo gênero de arte na Alemanha. Para usar a retórica dos "cadernos de cultura" atuais, Neumeister era um revolucionário, quebrando paradigmas.




(12 de maio de 1671 – 18 de agosto de 1756)

Vivo!

Como foi dito na nota anterior, não é simples compatibilizar as duas contagens do David, mas esta pode ser a sistematização qualitativa que ele produziu. O Ricercar a 6 é divido em duas partes (segundo os compassos) ou em três grupos (exposição, primeiro grupo, segundo grupo). Segundo a idéia de parte, ela se estrutura em:

a) elaboração da escrita em seis partes;

b) elaboração imitativa da seção média do tema;

c) elaboração imitativa da seção de abertura do tema.

Esse esquema, na primeira parte, que inclui a exposição, tem mais entradas (sete contra cinco) e mais episódios. Na segunda parte, há uma elaboração adicional da seção média do tema, que serve de recapitulação do primeiro contraponto. David nota ainda que o esquema tonal das cadências é cíclico (dó-mi menor e sol), mas não o é nas entradas. O que gera uma assimetria que é corrigida ao longo da peça.

Curiosamente, de um ponto de vista meramente combinatório (seis partes, "duas metades", três grupos e seleção tonal das entradas e cadências) aponta para uma peça com a dimensão entre 99 e 104 compassos. O Ricercar tem 103 compassos.

Finalizando, é possível dizer que o charme do Ricercar a 6, diante dos elementos apresentados pelo David, não está na idéia de simetria, explorada de forma exaustiva nos cânones. Simetria, aqui, no sentido lado, de relações determinadas. O ponto espantoso é a construção dinâmica da simetria. Não se trata apenas de repetir a simetria pré-existente (mera geometria) ou deslocá-la em dois planos, micro e macro (mero fractal). Para o Ricercar, isso é pouco. Ele materializa dinamicamente os mecanismos de complexificação da simetria. A segunda parte não se desdobra ou imita a primeira parte; ela brota dele como se estivesse viva.

Preso por "mecanismos genéticos" ao "passado" (recapitulações, semelhanças de forma, etc), mas avançando no tempo por diferenciação (em lugar da improvisação do Ricercar a 3, elaborações adicionais, entradas fora do esquema tonal inicial, etc.), acho, honestamente, que o Ricercar a 6 está vivo.

http://www.youtube.com/watch?v=JPKb-QLfqAE

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Un sac de centimes

Duas observações:

a) a extensão da exposição (compassos 1 a 28) pode ser considerada longa (quase 30% de toda a peça, que tem 103 compassos) e uma pura derivação do fato de que trabalhamos com seis partes. Acho, contudo, que existe uma íntenção aqui. Música é memória e suspeito que Bach não está apenas, na exposição, marcando em nossa memória o Tema Régio, mas a estrutura com que ele é elaborado;

b) a exposição envolve seis entradas do Tema Régio (que é usado em dois pedaços separados, o salto de sétima e a progressão cromática) e com mais uma na primeira seção, temos 7 das 12 entradas na primeira metade da obra, mas essa "falta" de simetria pode ser explicada para natureza da segunda metade, que é basicamente reelaboração e recapitulação dos materiais da primeira parte (na segunda, o Tema Régio quase nunca é usado em suas tonalidades originais).

Ocorre-me aqui uma notável diferença com relação à Chaconne, cujas seções vão ficando menores e mais dramáticas na recapitulação do tema. O Ricercar oferece uma longa estrtura expositiva e vai "ampliando" sua elaboração, cada vez que se distancia em termos de elaboração e tonalidade.

"and the anomaly revealed as both beginning, and end"

Agora chegamos ao momento decisivo, onde, para usar a linguagem do Arquiteto da Matrix, the moment of truth, wherein the fundamental flaw is ultimately expressed, and the anomaly revealed as both beginning, and end." Ou seja, o Ricercare a 6.

A falha fundamental é a imperfeição relativa de todas as formas anteriores de contraponto e de exposição do Tema Régio, mas ela só pode se "revelar" pela forma perfeita, que é o Ricercare a 6. Ela é, portanto, uma anomalia. Apesar de ser o ponto final de uma série, não é como os demais elementos. Pode ser, portanto, fim, mas também começo.

O gráfico traz as informações relevantes, mas a distribuição dos compassos por cada seção do Ricercar a 6 exige alguns provisos necessários:

1. O David entende de música, mas teoria dos conjuntos não é o forte dele. Não sabe se analisa a distribuição numérica das notas ou dos processos. Tentei ser o mais fiel possível à organização que ele imprimiu.

2. Alguns compassos são contados duas vezes, por razões musiciais auto-evidentes em uma obra polifônica.


quarta-feira, 21 de julho de 2010

Ainda sobre o Allegro

"O tratamento do contraponto nesta fuga é excepcional (sim, o allegro é uma fuga..). A primeira entrada do sujeito é apoiada por uma linha no baixo casual demais para ser reconhecida como contraponto e, de fato, avança sem recorrência. O par de contrapontos da segunda entrada retorna duas vezes, com duas entradas do grupo médio confiadas às vozes mais altas. O par de contrapontos da terceira entrada retorna uma vez, com uma entrada conclusiva do grupo médio. Assim, os contrapontos da exposição são todos eles usados novamente no segundo terço do movimento" (pág 133).

"Ora, a introdução de um novo contraponto no fim do movimento é capaz de perturbar a unidade de forma. Bach elimina esse perigo ao estabelecer o último contraponto como a conclusão de um desenvolvimento rítmico. Ele começa o movimento com notas mais lentas, então adicional algumas mais rápidas, constrói com elas um episódio, amplia a recapitulação desse episódio com uma extensão em notas mais rápidas e finalmente usa esse movimento extremo como contraponto das últimas entradas do sujeito. - os contrapontos entrando após a recapitulação do contraponto previamente introduzido. Assim o movimento adquire unidade, ainda que o último par de contrapontos não tenha recapitulação, e consuma, ao mesmo tempo, o desenvolvimento com um clímax." (pág 134).

O fascinante é que, para David, essa conclusão representa exatamente uma solução para o "problema" do Ricercare a 3: a não retomada dos três últimos pares de contrapontos. Será que Bach, ao final da Sonata da Oferenda, apresenta uma "solução" para os "problemas" formais do Ricercare a 3?

terça-feira, 20 de julho de 2010

Allegro e Andante

Sobre o Allegro:

"A distribuição dos sujeitos por toda a estrutura realça seu balanço. O principal sujeito do movimento aparece nove vezes: uma vez na flauta e no violino em cada seção, exceto a terceira, e uma vez no baixo, no exato centro da forma. O Tema Real aparece seis vezes: duas vezes no baixo, na segunda e última seções, uma vez no violino, no centro exato da forma, e uma vez na flauta, no início da recapitulação. Assim um verdadeiramente magnífico equilíbrio é conseguido. Bach raramente criou uma forma com simetria mais estrita. Ele deve ter planejado o movimento deliberadamente de tal forma para que fosse uma perfeita peça central do grande todo, do qual era parte". (pág 122).
 
Sobre o Andante:


"Esta construção única é tornada ainda mais interessante e convincente por meio de seu tratamento de padrões métricos. Das cinco partículas introduzidas antes da abertura da recapitulação, somente duas mostram regularidade métrica: a primeira e a seção contrastante, que não é objeto de recapitulação. Todas as partes da recapitulação, de outro lado, concordam com a norma métrica estabelecida na abertura do movimento. Dois dos padrões irregulares contidos na arsis da forma são em seguida ajustados e o terceiro equlibrado por uma contraparte métricamente regular; assim uma exposição predominantemente irregular é retomada por uma completamente regular recapitulação" (pág 127).

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Sonata

Nas peças da Sonata, o Tema Real tem uma presença mais livre e assim acontece no primeiro movimento, o Largo. Tecnicamente, são três grupos de 16 compassos, a primeira parte com repetição, uma segunda com contraponto e uma terceira de recapitulação. O Tema Real surge principalmente no baixo.

Bach, justamente por usar mais livremente o TR, escolhe, a cada movimento, uma "assinatura" diferente. No caso do Largo, é o salto de sétima da primeira parte do tema. Também usa variados formatos para denotar complexidade crescente. Na segunda seção, o primeiro motivo retorna, mas invertido. Na terceira seção, recapitula-se a primeira, com inversão na entrada dos instrumentos. Conclui David:

"No conjunto, o movimento exibe uma maravilhosa combinação de liberdade e regularidade: tendo o caráter de livre fantasia é, ao mesmo tempo, uma obra prima de estrtutura formal. Isto é particularmente conveniente para constituir um "prelúdio" (que é seu caráter na sonata) de uma fuga. Sua relação com o Allegro seguinte é enfatizada por um nexo temático, pois o último de seus motivos principais é usado no Allegro sob os mais variados padrões." (pág 117).

Note-se aqui um detalhe maravilhoso. Para iniciar sua Sonata, o Mestre reduz, obviamento, o uso dos mecanismos estritos da polifonia. Não há inversão formal, aumentação, espelhos e coisas que tais. Entretanto, ele vai usar os mecanismos latos da polifonia: a assinatura temática, a relação sugerida, a imitação, etc. Mesmo quando a peça não é polifônica, ela a emula, mesmo no mais galante dos formatos.

Trata-se de uma citação? De uma ironia? De uma homenagem?

domingo, 18 de julho de 2010

Criatividade barroca sem o controle da razão

Os três elementos do Ricercare a 3 são justamente os três elementos facilmente visíveis na comparação com a função y= ln(x)*10. Ele é uma espécie de Bach em estado original, criatividade barroca sem os controles da razão.

A chamada Primeira Seção (compassos 1-37) vai expondo normalmente as três partes com as entradas na ordem habitual tônica-dominante-tônica e em ordem descendente. Um motivo "d" em staccato é introduzido para realizar o contraponto com o tema. A primeira seção, portanto, apenas "abre os trabalhos".

A Segunda Seção (compassos 38-86) inclui também três entradas do sujeito, mas agora em ordem ascendente, na sequência dominante-tonica-subdominante e mais espaçadas. O próprio Tema Real aparece disfarçado na primeira entrada. A segunda entrada também simula episódios que não realiza. A terceira entrada termina com uma "falsa cadência". A elaboração já se mostra bem mais complexa e termina com uma recapitulação das transições imediatamente anteriores.

Aí a Terceira Seção (87-140) anuncia vai ampliar a recapitulação para alcançar as formas expostas na primeira parte da Segunda Seção, mas ele introduz a chamada "fantasia" (105-128), que inclui imitações na oitava, modulação, o sujeito "a" em diminuição, sequência cromática no baixo e o retorno do motivo cromático em imitação na oitava.

Ou seja, Bach inclui todo um trecho destoante da estrutura quadripartite e fora do centro de simetria da peça. É como se a mera insinuação de uma recapitulação não bastasse e a imaginação se libertasse, mesmo dentro da mais estrita organização. Por fim, a fuga então retorna ao seu padrão normal, depois da fantasia, e os vários episódios agora incorporam "reminiscências" (é como as chama David) da mesma.

A Quarta e última Seção (141-185) traz as três entradas do sujeito na mesma ordem da primeira seção, mas separadas como na segunda seção. Todas três com o mesmo par de contrapontos. Assim, certas conexões entre a segunda e a quarta seção suplementam as relações mais fortes entre as seções 2 e 3 e entre 1 e 4.

O prodígio barroco vai não apenas promovendo e ampliando as conexões entre suas várias partes (ou seja, dissolvendo suas próprias identidades), mas incorporando a "fantasia", que nada tinha a ver com o plano sugerido pela exposição da obra.




sexta-feira, 16 de julho de 2010

Duas lições em uma

David passa, no capítulo 8, a uma análise dos dois Ricercares e da Sonata. Desde logo ele nota que o Ricercare a 3 foi mantido, na versão publicada, com a mesma "fantasia" (um trecho mais livre dentro da divisão em quatro seções e fora da simetria global do Ricercar) criada na improvisação diante de Frederico II. Bach não "corrigiu" a versão e há bons motivos para crer que estamos ouvindo (na maior aproximação possível) a peça que foi "improvisada" diante de Frederico II. Fica também realçado outro aspecto estrutural da Oferenda: ela exibe não apenas uma progressão de complexidade do Ricercare a 3 ao a 6, mas também a progressão de um contraponto improvisado a um contraponto estudado.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Plano original

No capítulo 7, David, que está oferecendo a primeira edição "corrigida" da Oferenda (1945), expõe sua hipóteses para a ordem original das peças. O assunto parece de somenos, mas não é: o próprio editor (Schubler) confundiu-se na publicação e não existe mais o manuscrito original (apenas do Ricercare a 6). Usando a cópia dedicada a Fred II, depositada na biblioteca da princesa Amália e depois transferida à Biblioteca Real Prussiana, ele restabelece o plano original e corrige uma impressão criada logo por Spitta, que não reconhecia na Oferenda uma obra unificada.

David também recupera a cronologia das soluções para os cânones, cujo ponto inicial é obra de um discípulo tardio de Bach ainda em 1763. Até a primeira publicação acadêmica da Oferenda, realisada pela Casa Peters, em 1937, ele registra quase duzentos anos de análise mais ou menos contínua do material da Oferenda - uma demonstração de quanto a "fama" de Bach é uma questão relativa. A Oferenda
que ouvimos hoje, uma obra integral, organizada, simétrica, executada com uma correta análise histórica, data, portanto, da edição Hans Theodore David, de 1945. Mesmo a edição Peters (1937) inclui marcações de dinâmica e ornamentos não originais, introduzidos pelo editor.

Nota delicada: o manuscrito do Ricercare a 6 foi preservado por Carl Phillip Emmanuel, que o guardou até a sua morte. A partitura foi leiloada junto com seus bens em 1791, adquirida por outro aficcionado por Bach e enfim doado à Biblioteca Prussiana. Que Deus preserve o bom nome de Carlos Felipe, filho de João Sebastião!

sábado, 10 de julho de 2010

Sobre ornamentos

A tarefa de David é muito facilitada, pois o Mestre escreveu uma tábua de ornamentos no Pequeno Livro de W.F. Um pequeno trecho do sua análise, contudo, merece transcrição:

"A execução de ornamentos na performance moderna deve ser historicamente correta, mas também artísticamente convincente. Ornamentos devem ser improvisados para embelezar e, portanto, devem manter um caráter irracional. A maior parte das explicações de ornamentos dadas por contemporâneos são racionalizações, tentativas de expressar ritmicamente padrões livres com sinais de musica estritamente medida; tais realizações vão soar pedantes ou aritificiais a não ser que se sejam apresentadas com uma certa irregularidade" (pág 75).


quinta-feira, 8 de julho de 2010

Sem bater mais forte nas teclas

O capítulo VI trata da interpretação da Oferenda e as observações de David  - o livro, na verdade, é a peça introdutória de sua edição da partitura - são muito interessantes.

Sobre o tempo: mais uma vez, apenas os movimentos da sonata têm indicação de tempo. As demais peças seguem por conta do executante, ainda que as indicações dominantes sejam 2/2 e 4/4 (mais o primeiro). David invoca também o testemunho de Forkel, que sugere a preferência de Bach por tempos rápidos. Na prática, ele sugere que o tempo deve ser escolhido em função dos mesmos fatores determinantes na escolha da instrumentação: depende do que se quer realçar e com qual combinação de instrumentos.

O mesmo vale, em menor medida, para a dinâmica. Nesse caso, David recomenda um estudo das práticas barrocas (pág 61) e o completo abandono das sugestões românticas. Lembra ele que o compositor distinguia os momentos especiais de suas composições por figuras melódicas e harmônicas e não batendo mais forte nas teclas*.

Em suma, David sugere estudo, estudo e estudo, pois mesmo a Oferenda foi iniciada em um pianoforte e com a intenção de emular a música galante. O intérprete estaria autorizado a imaginar mudanças de sonoridade aqui e ali.

* uma pequena nota pessoal: como eu gosto de Bach...

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Pela voz humana

“Estas fugas, certamente, foram escritas para o cravo, mas devem ser vistas como obras primas do entrelaçamento das linhas do contraponto, antes do que meios para exibir a qualidade de um instrumento em particular. Elas podem ser efetivamente tocadas em qualquer instrumento de teclas ou por cordas e mesmo, em alguns casos, bem podem ser executadas pela voz humana”.


A. Madeley Richardson. Auxílio para a Escrita da Fuga. Nova York, 1930, pág 6.



terça-feira, 6 de julho de 2010

Hipóteses

São dois os níveis de abstração já expostos:

O Tema Régio é apenas uma base sobre a qual são construídas relações lógico-musicais, dos Cânones, à Sonata, até o Ricercare, que, por sua vez, embute, em si mesmo, a Sonata e os Cânones. Como a fita de Moebius, a Oferenda se estende sobre si mesma e tem sempre a mesma face. No limite, a música, como matéria sensível, tende a zero pois o relevante é a relação entre as peças.

A instrumentação não define a personalidade timbrística da Oferenda; é apenas o veículo material de uma de suas dimensões (o contraponto, o conjunto, o ricercare). A instrumentação é um ponto de vista, de onde contemplamos a Oferenda. Está aberta, portantos, aos instrumentos do futuro e também das inteligências alienígenas. Na verdade, pode mesmo ser executada no Paraíso, cujos instrumentos desconhecemos. Aliás, Deus é a única inteligência que ouve corretamente a Oferenda em toda a sua complexidade*.

* Essa proposição é trivial, uma vez que a omnisciência divina garante a compreensão integral de todas as implicações da Oferenda. Se, contudo, a composição é fruto do livre arbítrio do compositor, Deus não pôde interferir em sua criação. De alguma maneira, ouviu, ao menos pela primeira vez, a Oferenda.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Três versões da Oferenda

Há três sugestões específicas para a instrumentação:

1. Se o objetivo é apresentar a Oferenda "como um todo", sugere flauta, cordas solo e acompanhamento ao teclado;

2. Se o objetivo é executar os Ricercares ao teclado, sugere teclado solo, flauta, cordas solo e orquestra de cordas;

3. Se o objetivo é realçar a estrutura do contraponto, sugere, flauta, instrumentos de sopro, cordas solo e acompanhamento ao teclado.

É curioso registrar que, mesmo do ponto de vista da instrumentação, essa vaca sagrada da modernidade, com suas orquestras socialistas e virtuoses, a Oferenda é absolutamente flexível, podendo ter suas dimensões realçadas ao gosto do quem toca ou de quem ouve. Não existe uma audição de base, da qual poderiam ser feitas versões. Tudo é versão.

domingo, 4 de julho de 2010

Duas explicações

H.T. David percebe, obviamente, a natureza complexa da Oferenda e oferece uma explicação trivial e outra bem mais interessante.

Do ponto de vista da mera trajetória criativa, ele considera a Oferenda uma peça complementar da obra publicada de Bach, ou seja, "mais um" Clavier-Ubung que, nesse caso, se estende para uma peça instrumental. Em favor de David deve ser dito que mesmo ele percebe a contradição dessa classificação: como poder ser "mais um" Clavier-Ubung se envolve uma peça de câmara?

Quando inverte seu foco é que oferece uma análise interessante. Tomando como ponto de partida a idéia de Ricercar (mais que uma fuga, uma demonstração dos vários usos possíveis de um tema), David sugere que toda Oferenda, na verdade, é um grande Ricercar. Ainda que essa idéia seja uma mera decorrência de seu caráter fractal (aspecto que passa ao largo da análise de David...), é uma sugestão criativa que vai muito além do "'lá vai, lá vai, lá vai, lá vem, lá vem, lá vem" da análise musicológica mais comum.

"Ainda assim, o uso da palavra é espantoso. Um ricercar, não importa quantas seções sejam incluídas, era uma composição, consistindo de vários movimentos conectados, enquanto a Oferenda Musical apresenta-se como uma série de 13 composições separadas. Mas para Bach a coerência entre as seções parece tão forte quanto a separação física entre elas; e assim ele pode se referir a toda obra (a sugestão está no acróstico) como um ricercar - indicando que ela existia em sua mente como se fosse uma composição em completa continuidade, um todo perfeitamente unificado" (pág 43).


sábado, 3 de julho de 2010

Da ubiquidade

O que estamos realmente ouvindo quando ouvimos um cânone da Oferenda? Muito do seu sentido musical não é determinado apenas por sua própria estrutura, mas por suas relações com os demais cânones e também com a sonata e também com os ricercares. A melodia material, a sequência de sons que atinge nossos ouvidos, é apenas o primeiro elemento do processo de compreensão da pergunta: o que é a Oferenda?

Uma resposta precisa levar em conta alguns fatos importantes:

1. O tema da Arte da Fuga é do compositor; o tema das Goldberg, também; o tema das Variações Canônicas, é um coral de Natal. O tema da Oferenda não é tradicional, nem autoral, veio de Fred II ou de C.P.E ou de ninguém - foi inventado. A "autoria" da melodia, portanto, é irrelevante para a obra construída;

2. As Variações Goldberg e as Variações Canônicas são compostas para um instrumento; a Arte da Fuga também. A Oferenda embute uma Sonata e não tem uma instrumentação determinada;

3. As Variações Goldberg são o fruto de uma encomenda; as Canônicas, são uma peça para colegas músicos; a Arte da Fuga também foi composta para uma comunidade de especialistas. A Oferenda tem um só destinatário, mas ele não encomendou a obra;

4. Ela começa com uma peça (o Ricercare a 3) que é objeto de uma improvisação e termina com o Ricercare a 6 que é o fruto da reflexão. Se olhamos com atenção, todos os procedimentos composicionais estão espalhados pela Oferenda: improvisão, reflexão, solo, conjunto, fuga e música galante, etc... O Tema Régio está em "todos os lugares da música", aparece no mais seco cânone e no mais charmoso adágio, inteiro ou em pedaços, como cantus firmus ou como parte do contraponto.

O que está em "todos os lugares"?



sexta-feira, 2 de julho de 2010

Onze dimensões

Por fim, David não oferece nenhuma informação adicional sobre o Ricercar e sobre a Sonata, além do que é convencional: (a) o termo ricercar, cânone no passado, passou a designar formas livres de contraponto e seu uso na Oferenda sinaliza uma certa intenção erudita; (b) a sonata, na forma "de igreja", em quatro movimentos, revela-se "conservadora na forma, progressista no estilo". O emprego da flauta é uma evidente homenagem ao Rei.

Para além, contudo, da soma de suas partes, o que é a Oferenda?

David tenta responder a essa pergunta mais geral (ele também é autor de uma pesquisa original sobre as coleções musicais até o século XVIII), mas não consegue evitar a impressão de estranheza. Até 1750, a imensa maiora, a gigantesca maiorias de coleções musicais (incluindo aí os WTCs, as coleções de suítes, etc) são organizadas segundo o eixo da tonalidade. Essa é a variável relevante. As exceções são raríssimas, mas, dentre estas, estão quatro obras do compositor: as Goldberg, as Variações Canônicas, a Oferenda e a Arte da Fuga.

Todas elas são baseadas na idéia de estrutura e não na diversidade de "sabores" da tonalidade. Como não é difícil notar, esse último princípio impõe sérios limites para a lógica de uma coleção (as peças individuais são muito diferentes umas das outras..). Em contrapartida, no primeiro caso, as possibilidades criadas pela mera combinatória são exponenciais.

Seu uso sugere, por exemplo, a idéia de um "meta cânon": uma vez que cada cânone é regulado por uma lei matemática (uma função) eles podem ser somados e transformados uns nos outros, mesmo que sejam inexecutáveis.

Há outras implicações. Escreve David sobre a coleção de cinco cânones "o primeiro deles representa a forma mais simples de cânone; o segundo contém um elemento de contraponto; o terceiro contêm dois. Assim, a série resultante pode corresponder matematicamente à série do número, do quadrado e do cubo. Foi o desejo de estabelecer essa progressão lógica que levou Bach a propor um cânone tanto em moção contrária como com aumentação sem ter primeiro demonstrado este último procedimento sozinho". (pág 36).

O esquema pode ser ainda complicado por referências estritamente musicais. No primeiro grupo de cânones, o primeiro, mais simples, sugere o ritmo de uma abertura francesa (pois está iniciando a coleção...). O último cânone, que enfeixa o "número, o quadrado e o cubo", é modulado, maior e mais complexo, oferecendo um "finale" para o primeiro conjunto. No segundo grupo de cânones, a última e a primeira peça, em vez de distintas, como no primeiro, são aparentadas: o cânone em espelho e a fuga canônica.


quinta-feira, 1 de julho de 2010

Espaços métricos

No capítulo II, David trata do Tema Régio sem maior especulação sobre sua origem e nota, ao contrário de observações recentes, que favorece o tratamento contrapontístico. Ele expõe também, de forma preparatória, a organização geral da Oferenda: (i) o Ricercare a 3; (ii a vi) cinco cânones (sem a presença do tema como "parte"); (vii) O Trio Sonata; (viii a xii) mais cinco cânones (com o tema como parte); e (xiii) o Ricercare a 6 vozes. Também é trivial o registro de sua simetria (ainda que o número de cinco cânones sugira alguma estranheza), articulada com a complexidade progressiva.

É no capítulo III que David apresenta uma descrição individual das peças. Tomando como suposto o conhecimento geral do que é um cânone, uma sonata ou uma fuga (um ricercare é nada mais do que isso...), sua exposição começa pelos cânones (todos são "a 2").

No primeiro grupo:
ii. Cânone na oitava dupla (perpétuo);
iii. Cânone em uníssono;
iv. Cânone em movimento contrário;
v. Cânone por "aumentação" e movimento contrário;
vi. Cânone por modulação (completando um círculo de quintas).

No segundo grupo:
viii. Cânone em espelho;
ix. Cânone do "caranguejo";
x. Cânone em movimento contrário;
xi. Cânone a 4
xii. Fuga canônica.

Note-se que, no primeiro grupo, todos os cânones são construídos sobre uma medida de "distância" entre as partes: a dupla oitava, o uníssono, o movimento contrário (a distância "interna" entre as notas), o movimento contrário com aumentação (a distância interna entre as notas, mais a distância entre as quantidades das notas), concluíndo com o cânone por modulação (distância entre as tonalidades possíveis).



Uma descrição matemática do Tema Régio

Se fixamos um valor qualquer para a distância entre cada nota do Tema Régio e produzimos uma soma cumulativa da medida absoluta dessa distância, temos uma função definida por 19 pontos (21 notas menos duas distâncias, no início e no fim). Sua forma é:



Nota: o último ponto da soma cumulativa é 29 e qual é o logaritmo natural de 19 (o número de pontos) multiplicado por dez?

O Tema Régio, sob qualquer ponto de vista, é uma construção curiosa. Musicalmente, suas notas iniciais e finais são triviais e o que conta mesmo é a preparação e a própria progressão cromática (todas as notas estão no tema...), cujo efeito melódico é altamente problemático, como sabemos.

Uma descrição matemática da distância das notas e, portanto, da densidade da informação necessária para construir sua imagem auditiva apenas ressalta a natureza logarítmica de sua evolução: uma "rápido" avanço sobre o início da reta dos x, seguida por um posterior declínio na taxa de crescimento. Ela expande-se e, em seguida, reduz sua taxa de expansão.

Ainda mais interessante (um ponto especulativo) é que, dada sua organização formal, o Tema Régio pede exatamente um tratamento matemático de sua forma. Melodicamente, não tem nada de especial a oferecer. Se alguém olhasse apenas a forma do tema régio na partitura e buscasse uma associação matemática seria atraído por uma função trigonométrica, como o seno, mas todas melodias conhecidas no mundo são "trigonométricas". Por outro lado, a soma cumulativa da distância entre as notas (que mede a quantidade de informação que assimilamos para entendê-la) revela o efeito real da progressão cromática: uma taxa de expansão constante que, no global, funcional como uma redução da primeira tríade e da sétima menor.

Da posição de um livro na biblioteca

Como seria de se esperar em uma obra de sua época (1945), Hans Theodore David parte do relato historicamente convencional, construído em torno do material publicado pela biografia de Forkel. Não há qualquer leitura ambígua que se aproxime das hipóteses do livro do Gaines (The Evening inf the Palace of Reason), limitando-se ao registro convencional da estrutura tripartida e as dificuldades de se compreender a diversidade editorial da apresentação da obra.

O autor é observador o suficiente para evitar certas armadilhas. O silêncio real sobre a Oferenda nada tem de especialmente significativo. Não era comum, para monarcas, responderem formalmente ao recebimento de obras dedicadas; também não era necessário estar nas contas da corte para que tenha havido um pagamento. Não há porque se deduzir que a obra foi ignorada (ou apreciada) por Frederico, que a destinou à bibliteca da princesa Amélia, uma musicista não desprezível.

De todo modo, uma obra dedicada ao contraponto, enigmática e não convencional certamente não seria prioridade para Frederico II. O aspecto biográfico mais relevante é que, perto do fim da vida, Frederico ainda recordava do tema, do encontro em Potsdan e do "velho Bach".


Tema régio (1747)

Há sempre mais alguma coisa

"Tenho isso por verdade: não se pode olhar profundamente o bastante a Oferenda Musical. Há sempre mais depois que alguém pensa que sabe tudo. Por exemplo, por volta do fim do Ricercar a 6, aquele que evitou improvisar, Bach sorrateiramente esconde seu nome, dividido entre duas vozes superiores. As coisas seguem em muitos níveis na Oferenda Musical. Há truques com notas e letras; há engenhosas variações com o Tema Real, há cânones originais, há fugas complexas, há beleza e profundidade de emoção e mesmo uma exaltação nos seus múltiplos níveis. A oferenda musical é uma fuga de fugas, uma Hierarquia Intrincada como as de Escher e Gödel, uma construção intelectual que me faz lembrar, de modo que não sei expressar, a bela fuga da mente humana. Por isso em meu livro uni as três correntes: Gödel, Escher e Bach"

Douglas Hofstadter, Gödel, Escher, Bach, pág 719.