quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Música e estatística

No capítulo 5, Huron busca expor algumas estatísticas musicais básicas, calculadas apenas sobre melodias, com um uso de uma base multicultural. São examinadas cinco aspectos básicos: proximidade tonal, mudança de grau, inércia de grau, regressão melódica e arco melódico.

Proximidade tonal é definida pelo cômputo do uso de intervalos, medidos em semitons. A maioria esmagadora dos intervalos empregados flutua entre 0 e 4 semitons. Intervalos superiores a 12 semitons são raros, seja qual for a cultura musical. Há razões biológicas para isso: quanto mais próximos os sons em uma seqüência melódica, mais rápida é a sua identificação.

As estatísticas sobre ‘mudança de grau’ mostram que intervalos maiores são em sua maioria ascendente, intervalos menores são geralmente descendentes. Na música clássica ocidental, os intervalos de 5 semitons são 63% ascendentes. Só 40% dos intervalos de um semitom são ascendentes.

Quanto à inércia de grau, o movimento descendente é seguido em 70% dos casos por outro movimento descendente. O movimento ascendente é seguido por outro ascendente em 51% dos casos.

Uma regressão melódica é definida como a chance de uma mudança de direção melódica após um intervalo. Como é fácil supor, quanto maior o intervalo, maior a chance de uma mudança na direção (saltos superiores a três semitons são seguidos por mudanças de direção em 70% dos casos, por exemplo).

No caso do arco melódico, bases de dados com mais de cinco mil melodias são usados para mostrar um padrão recorrente: a elevação gradual da melodia em tonalidade e sua posterior “descida”. (Em uma típica frase de sete notas, a quarta nota está, em média 8,8 semitons acima do dó, a primeira nota em 7,8 e a última em 7,2).

Qual o ponto relevante? É que sob a imensa diversidade aparente da produção musical, sua estrutura exibe padrões supreendentemente constantes, considerada como experiência meramente sonora. Uma constatação que reforça a tese do Huron sobre a natureza "aprendida" da experiência musical e sobre a natureza do prazer estético musical (reconhecer uma estrutura familiar). Esse fato também chama atenção para a natureza da música "fácil".

Completado o estudo estatístico das estruturas musicais, Huron começa outro percurso, partido justamente do que entende ser a forma básica da audição musical: o aprendizado dessas estruturas e a capacidade da mente antecipar essa experiência.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Audição é aprendizado

O capítulo 4 começa com um exame do aprendizado da expectativa da audição musical, organizada em torno da oposição clássica: é inata ou aprendida? Como organizamos os padrões oferecidos pela experiência: por indução ou dedução?

O interessante da resposta de Huron é que ela usa a teoria da evolução para sustentar que não há diferenças fundamentais entre instinto e aprendizado, sendo cada uma delas a melhor adaptação a um tipo de ambiente. Se o ambiente é estável, o organismo desenvolve instinto; se não, o organismo desenvolve a capacidade de aprender.

Dessa maneira, a própria existência de uma audição sofisticada no homem e também da própria música mostram que a espécie desenvolveu sua capacidade de “aprender” com sons. Lidar com sons é importante em nosso processo evolutivo e partilhamos essa herança com várias outras espécies que dependem dos sons para sobreviver ou apenas viver em sociedade. A Natureza produz “sons interessados”: todos, no fundo, são processos de comunicação. Daí decorre também a chamada lei de Hick-Hyman: quanto mais familiar um estímulo, mas rapidamente ele é processado.

As conseqüências musicais desse fato são notáveis: os chamados “ouvidos absolutos”, fenômeno raro e misterioso, são mais rápidos em identificar o sol ou o dó do que o mi e o si. Os tons são identificados sempre de forma mais rápida do que os semitons. A razão é simples: são as tonalidades que estatisticamente estão mais presentes nas melodias. Ou seja, o “ouvido absoluto” está longe de ser absoluto: depende de aprendizado e repetição!

Na verdade, a percepção de tonalidade é sempre relativa e quase sempre se assume que a primeira nota será a dominante ou a tônica. Uma escala em fá, por fim, é a que exige mais tempo para ser reconhecida: justamente porque é a mais rara em termos práticos. O mesmo fenômeno repete-se para o caso das “figuras musicais”: elas são reconhecidas na razão direta da estatística de seu encadeamento. Uma passagem fá-mi ocorre cinco vezes mais do que uma passagem mi-fá; primeira é muito mais reconhecida como parte de uma “figura musical”. O aprendizado da audição é direto reflexo da exposição à música e às suas estatísticas.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Qual é a nota?

No capítulo 3, o objetivo é expor os métodos experimentais de medição da"expectativa":

1. Método de detecção da tonalidade - já mencionado na nota anterior. Se anunciamos um som, ele é mais facilmente detectado pelo ouvinte;

2. Método da produção - Pede-se aos participantes que "continuem" uma frase musical interrompida. Prova-se que o background cultural influencia bastante o padrão de resposta do sujeito do experimento;

3. Ajuste de tonalidade - Uma sequência musical é tocada e, em seguida, um acorde. Pede-se aos participantes para avaliar a adequação de um a outro;

4. Apostando na nota - O participante "aposta" na próxima nota de uma melodia;

5. Mexendo a cabeça - A resposta primária a um som desconhecido é orientar a cabeça. Instrumentos são postos no pescoço do sujeito para medir sua resposta instintiva a vários sons vindos de várias direções;

6. Ritmo cardíaco - O mesmo experimento é feito por meio de medições do ritmo cardíaco;

7. Método do tempo de reação - Basicamente, acopla uma tarefa mecânica à percepção de um estímulo sonoro. Sons familiares são mais rapidamente processados do que sons não familiares;

8. Resposta Potencial Evocada - Exame do eletroencefalograma do sujeito de experiência.

O exemplo mais curioso é oferecido pelo experimento "aposte na nota". Dois grupos de músicos, americanos e balineses, apostam na nota seguinte de uma longa melodia balinesa. Nas primeiras dez notas, os americanos produzem escolhas praticamente aleatórias, os balineses acertam bem mais. No "meio" da melodia (ou seja, quando ela fica complexa e já há material para o cérebro processar sua continuidade) a taxa de acerto da "próxima nota" é praticamente a mesma. No fechamento da melodia, os americanos continuam melhorando sua taxa de acerto, mas os balineses melhoram muito mais.

Diante de uma melodia, portanto, o background cultural do ouvinte é importante para a detecção de familiariedade, mas mesmo quem não tem esse background pode intuir a "estrutura" da melodia.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Surpresa

No capítulo 2, Huron apresenta seu modelo de forma mais precisa, por meio do conceito de surpresa e suas respostas biológicas: riso, espanto e arrepio. Tecnicamente falando, a surpresa biológica é produzida quando um organismo não prevê corretamente os eventos futuros e, a princípio, tem uma resposta negativa. Quando o conceito é aplicada à música essa resposta negativa é imediatamente controlada pela constatação de que a surpresa não ameaça o bem estar do organismo.

Restam, portanto, para a apreciação da sensação sonora as respostas de prazer, espanto e "frisson" e seus correspondentes somáticos, como os movimentos dos pelos, arrepios, mudanças nos batimentos cardíacos, riso, mudanças no padrão de respiração etc. Tudo isso é dito para assentar uma realidade fundamental: a audição musical é, obviamente, a audição de sons e obedece aos padrões biológicos com os quais analisamos esse domínio sensorial.

Por isso, aliás, os passarinhos não fazem "música pura". Sua "música" é completamente funcional e obedece a exigências reprodutivas, sociais e de defesa. As melodias passarinhescas são, na realidade, bastante complexas e embutem informações locacionais. Quando um pássaro quer anunciar sua posição no espaço, ele usa um tipo de som; quando não quer, outro.

sábado, 7 de agosto de 2010

Doce antecipação

O primeiro capítulo de Sweet Anticipation serve apenas para expor o projeto experimental de David Huron e as noções básicas do que seria uma psicologia evolucionária da percepção, ou seja, daquelas modalidades de organização de nossa relação com os dados sensoriais - antecipação, surpresa, expectativa, etc- e das possíveis valências positivas e negativas de cada uma dessas modalidades.

Do ponto de vista que interessa à música, trata-se principalmente do conceito de expectativa, ou seja, como projetamos o desenvolvimento das linhas melódicas a partir de determinados sons. Os experimentos relacionados por Huron buscam tanto examinar como o cérebro processa a música, mas também como antecipa o seu desenvolvimento.

Nesse sentido, o primeiro fato interessante é que as pesquisas com a percepção sonora mostram que quanto mais é "antecipada" a sensação de um som (por exemplo, sobre um pano de fundo de ruídos contínuos é ouvida uma frequência ou sequência de frequências) mais precisa é essa percepção (se a sequência de frequências é próxima do pano de fundo de ruidos). Em termos práticos, quanto mais familiar ou antecipável uma sequência de sons, mais clara é sua percepção subjetiva.

Ouvir um som distintamente é, quase sempre, ouvi-lo novamente - uma operação que envolve a memória.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O que é uma cantata?

Uma cantata representa, portanto, uma mensagem musical e literária verdadeiramente polifônica. Ela articula o versículo do evangelho ou do Velho Testamento, com a mais "contemporânea" poesia pessoal e termina ancorada no patrimônio comum do coral religioso. Música religiosa e formas profanas; prédica ortodoxa e prece mística. Que outra forma musical emprega, manipula e elabora tradições culturais de maior escopo, tradição e "modernidade"?

Tagliavini também chama atenção para outro aspecto interessante da arte bachiana. Desde o início do século XX (a partir da obra de Albert Schweitzer), a natureza imagística de muitas melodias permitiu várias elaborações sobre o caráter simbólico de sua música e alguns especialistas avançaram mesmo a idéia de um "dicionário" de figuras melódicas e de afetos.

Na verdade, é tomar a parte pelo todo. A cantata bachiana manipula, na verdade, vários níveis simbólicos e alegóricos. A melodia "visual" é apenas um deles, talvez a menos importante. A cantata bachiana é um concentrado semiológico, opera símbolos, alegorias, citação, duplas referências, e que dificilmente é esgotável em apenas um tipo de análise.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Dos corais

Por fim, a menção derradeira, naturalmente, cabe aos corais usados nas cantatas. Eles constituem um patrimônio literário que se estendem desde a Idade Média (Chris ist erstanden, poema original da BWV 4, data do século IX) até contemporâneos de Bach; começam com hinos latinos da cristandade, passam por lieder escritos por Lutero e pelos reformadores e termina com os mesmos poetas madrigalescos empregados por Bach.

Tagliavini apenas menciona os principais autores e fontes, uma vez que o assunto daria motivo a outro volume de pesquisa, e a criação bachiana da cantata coral - uma cantata baseada completamente no texto do coral e no uso sistemático de sua melodia tradicional.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Bach, músico e poeta

Existe também uma especulação em torno de um "libretista oculto", Christian Weiss Sr., o pregador de São Tomás. As primeiras cantatas compostas em Leipzig não têm autor definido e Tagliavini sugere que uma boa indicação seria o próprio pastor da Igreja. Mas não há prova documental dessa colaboração. Em outro capítulo, ela examina a possibilidade de que o texto de muitas cantatas tenham sido arranjados e criados pelo próprio compositor. Várias indicações concorrem para essa hipótese:

a) é frequente sua intervenção nos textos publicados pelos libretistas, com o propósito de torná-los mais simples, mais diretamente emocionais e mais adaptados à música;

b) não há outra origem possível para os textos usados nas "paródias", quando não havia como convidar o poeta original para escrever outra versão para a mesma música.

Com base no "estilo Bach", reconstruído a partir dessas correções e reelaborações, Tagliavini estuda várias cantatas sem autoria conhecida e pertencentes a períodos em que ele não trabalha diretamente com nenhum libretista conhecido e chega a uma lista de possibilidades. A lista inclui as cantatas compostas imediatamente na chegada a Leipzig - como as de número 75, 76, 70, 147, 186, - e outras mais tardias - 51, 27 e 56. Ele admite que é especulativo, mas há razões históricas e estilísticas para achar que tais textos foram compostos e elaborados por Bach.

Tagliavini é o primeiro a reconhecer que não há "grande poesia" nesses textos, mas essa possibilidade revela um envolvimento do compositor com a composição das cantatas que não permite vê-las como mero trabalho de ocasião. Nesse sentido, é uma indicação biográfica relevante.

domingo, 1 de agosto de 2010

A poetisa Marianne

De Neumeister a Picander completa-se um percurso: do músico que usava os textos produzidos, na verdade, para Teleman ao kantor que tinha seu próprio poeta, capaz de produzir versos em função de suas idéias musicais. No archive.org, aliás, há o texto completo da biografia de Picander, que é a dissertação doutoral de Paul Flossman, de 1899.

O "último libretista" de Bach é, curiosamente, uma poetisa, Marianne von Ziegler. Filha de um família de prestígio e riqueza em Leipzig, mas cujo chefe havia caído em certa disgraça, Zigler (nome de solteira: Romanus) se tornou a chefe do clã, centro de um círculo de poetas e de um salão elegante e poetisa. No mínimo nove cantatas foram musicadas por Bach, mas há indícios de que ela escreveu textos de encomenda. Zigler não era lá essas coisas como poetisa e as histórias da literatura posteriores não registram suas obras, mas a relação com Bach revela a natureza das conexões sociais do compositor em Leipzig. Zigler não era peixe pequeno, em termos sociais.

Por fim, sempre é relevante destacar que Bach buscou textos de uma poetisa para suas composições e ela não foi a única: Elizabeth Creuziger também teve seus poemas musicados por Bach.

Henrici oder Picander

O terceiro personagem nesse percurso é o popular Picander, pseudônimo de Christian Friedrich Henrici (14 de janeiro de 1700 - 10 de maio de 1764), um "poeta esfomeado", que passou muito tempo tentando ganhar a vida com poemas de ocasião e sátiras rimadas (mulheres eram um dos seus alvos preferenciais...). Depois de alguns conflitos com as autoridades em Leipzig, começou uma carreira de poeta sacro, justamente quando Bach chegava à cidade.

Quinze anos mais novo, sem maiores pretensões autorais e com boa experiência em poesia profana (talvez seja o "melhor poeta" entre os libretistas de Bach), era o instrumento perfeito para a produção de textos sob encomenda e não se deve esquecer que recebia uma percentagem dos folhetos vendidos no dia da execução da cantata.

Produzindo sob orientação direta, Picander se transforma também no libretista das peças profanas, mantendo uma longa colaboração artística com Bach, enquanto subia na sua carreira de funcionário municipal, dos correios até a posição de fiscal de impostos. Casou duas vezes, mas não teve filhos.

Das primeiras cantatas até a Cantata do Camponês (1742), são quase vinte anos de colaboração e muita gente acha estranho essa longa relação entre o antigo bandalho, "debochado" nos termos da época, e o Kantor de São Tomás. A primeira mulher de Picander foi madrinha de uma das filhas do Mestre. O fato, contudo, se alinha com a frase de Jesus: não vim salvar os justos, mas os pecadores. A fronteira social entre o maroto poeta e o sério kantor é mais visível para nós do que para eles. Por sinal, o último ciclo anual de cantatas de Picander é explicitamente dedicada a J.S. Bach.