quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Esperando o inesperado

O capítuo 16 é o último. Há um capítulo 17, mas é resumo. Huron trata do modernismo como problema para o seu paradigma da expectativa musical. Como se sabe, em suas vertentes pessimista ou otimista, o modernismo insiste em romper deliberadamente com as práticas ortodoxas e ainda tem a esperança de que a platéia pague o ingresso. Huron concetra a análise em três compositores, wagner, Xonberg e Stravinsky. Desnecessário dizer que ele estende as idéias modernistas a wagner, por conta do seu compromisso com a criação da "música do futuro", sejá lá o que for isso. Um parágrafo resume de forma perfeita suas principais teses:

"No caso de wagner, essa estética contrária é mais evidente na simples cadência. Especialmente em suas últimas obras, wagner fez tudo o que estava em seu poder para evitar, disfarçar, elidir, suspender ou atrasar o fechamento cadencial. Alguém poderia dizer que wagner escreveu música 'contra-cadencial'. No caso de Schoenberg, essa estética contrária é mais evidente em sua confessa recusa da tonalidade. Como veremos em breve, tonalidade tem um papel significante na organização da música de Schoenberg, mas seu papel é de 'psicologia reversa', na qual ele explicitamente se dispõe a desmontar qualquer implicação tonal latente. Eu sugeriria que sua música não é atonal, mas contra-tonal em estrutura. Finalmente, no caso de Stravinsky, a estática contrária é mais evidente em seu periódico desmonte do tempo. Assim como a visão de Schoenberg sobre tonalidade, Stravinsky não era simplesmente agnóstico em matéria de tempo. Ao contrário, trechos de sua música exibem uma organização sistemática cujo propósito é ativamente subverter a percepção do ritmo. Ainda que sua música permaneça altamente rítmica, algumas das mais distintivas passagens são metodicamente 'contra-métricas' em estrutura." (pág 333).

Não resta ao Huron, por mais que a tarefa o constranja, levar sua análise até o fim, mostrando as consequências percepcionais desses vários dispositivos modernistas, de acordo com o seu paradigma de expectativas musicais.

Registra, por exemplo, as descrições da música de wagner como "anseio sem fim", "ânsia sem paz", obtidas de ouvintes informados. Conclui, sem querer se comprometer, afirmando que é uma música que tenta e titila, nega e frustra, engana e interrompe, mas ... termina com um clássico: "mas nenhum ouvinte ocidental ilustrado pode negar a intensidade da experiência wagneriana" (pág 339).

Não, ele não define o que seria "intensidade da experiência", nem sua valência...

No caso de Schoenberg, ele não é tão mineiro. Afirma claramente que, ao frustrar as expectativas tonais de quem ouve, ele, na verdade, trai e desaponta o pobre do ouvinte. Também no caso de Stravinsky, ele é mais direto. Certas passagens da Sagração são, estatisticamente, 40 vezes mais difíceis de prever do que uma sequência aleatória gerada por uma distribuição métrica. Em outras palavras, uma espécie de ritmo "médio". Ele reconhece que tais passagens são dominadas por sentimentos de "confusão e caos". (pág 346).

O engraçado desse último capítulo é que todo o modelo experimental do Huron caminha para a "condenação" estética do modernismo ou, pelo menos, à sua classificação como um evento anedótico na história da Música, mas ele não se rende. A tal ponto que chega a escrever isso no fim:

"Talvez essa estética não-conformista emerja como um subproduto não previsto da busca da novidade artística. O espírito da inventividade artística poderia ter inicialmente encorajado uma certa insensitividade às experiências psicológicas evocadas por vários dispositivos. No mundo real, transgredir expectativas leva um organismo a sentar e observar. As experiências são memoráveis, mesmo que não sejam inicialmente prazerosas. Tendo inadvertidamente gerado essas experiências, essas mesmas experiências podem então se tornar o alvo de explorações posteriores e embelezamento. Mas essa sugestão é inteiramente especulativa" (pág 353).

Ou seja, é ruim, mas se você ouvir muito e com boa vontade, ficará bom de ouvir.

Tensão

No capítulo 15, Huron busca examinar as modalidades de experiência associadas às expectativas produzidas de forma consciente. Ele relaciona:

- o sentimento de antecipação, produzido, por exemplo, quando o encadeamento dos acordes aponta para uma solução "inevitável";

- o sentimento de suspensão, produzido, por exemplo, por um atraso na progressão tônica dominante;

- o sentimento da "nota estranha", introduzida em um progressão harmônica típica, para prejudicar a capacidade preditiva da experiência auditiva;

- o efeito emocional do "atraso".

Sobre este ponto, vale transcrever:

"Retardos são comumente associados com eventos de alta probabilidade, mas pesquisas mostram que a redução da velocidade acompanha eventos de baixa probabilidade. Pesquisando no Instituto Real de Tecnologia de Estocolmo, Johan Sundbergh observou que músicos geralmente desaceleram quando se aproximam de um tema ou acorde cromático de baixa probabilidade. Sundberg sugeriu que a razão para desacelerar é reduzir a probabilidade de que os ouvintes experimentem o evento com um erro não intecional. De fato, retardos são usados para sinalizar deliberação. Ele diz: eu quis precisamente isso" (pág 318).
- o sentimento de premonição, quando a expectativa é sinalizada pelo encadeamento de vários compassos. Seus exemplos, são o Concerto para Piano n. 5, de Beethoven (compassos 400 e ss.) e a Barcarolle, dos Contos de Hoffman;

- o sentimento de clímax:

"A tensão psicológica gerada em clímaxes musicais não é limitada ao fenômeno da expectativa. Há numerosos métodos para evocar tensão e três foram identificados há muito tempo: tonalidade aguda, alto nível de som e dissonâncias relativas. ALém disso, outros elementos contribuem para o sentimento de clímax como mudanças de timbre, uso do vibrato, aceleração de eventos, aumento no volume, tonalidade ascendente, baixa previsibilidade e demoras táticas" (pág 323).

Essa construção não é aleatória:

"Ao longo do século XX, vários estudos etológicos sobre o propósito e o significado dos sons animais foram conduzidos. Sons elevados estão associados a excitação em vários conjuntos de animais. Sons graves elevados são associados com agressão, sons agudos elevados são associados com alarme. Sons agudos baixos também saão associados a deferência, enquanto sons graves e baixos ao mesmo tempo com contentamento e ameaça" (pág 324).

Ele termina com considerações bastante interessantes sobre o conceito global de expectativa musical consciente, ou seja, o fato de que nossa audição além de deliberada é quase sempre orientada pelo prazer. Vamos ouvir música com a consciência antecipada de que ela é boa e de quais partes são realmente agradáveis. Ou seja, com o prazer adicional de uma expectativa sensorial que se confirma. Em termos mais folclóricos, é o prazer de pedir: "Bis!"

Surpresa e música

O capítulo 14 não é o mais brilhante do livro - a argumentação adota uma estrutura "en passant". Depois de examinar as estruturas repetitivas da música, trata das modalidades de criação de surpresas, organizadas de acordo com o tipo de memória musical:

1. Surpresa esquemática - a música afeta a percepção de um gênero, por exemplo, pelo uso de falsas cadências;

2. Surpresa dinâmica - quando a peça viola as expecativas sobre o fluxo de notas e sequência de acordes;

3. Surpresa verídica - são as paródias, citações, erros deliberados, etc;

4. Surpresa consciente - quando são violadas as expectativas típicas dos ouvintes mais informados.

Com esse esquema geral, passa a analisar as emoções despertadas pelas "surpresas". Discute o "frisson" (o exemplo é uma obra de Xonberg, Noite Transfigurada), riso (peças de Schikele), espanto (Os Planetas, Holst), estranhamento ( cita, Pedro, o Lobo, do Prokofiev).

Em termos mais filosóficos, os EXPERIMENTOS (nota do resumista: é tudo experimento de laboratório, não tem achismo, nem subjetividade coletiva obtida em ponto de venda de álcool, etc) de David Huron mostram que a "novidade" em música, definida como a "quebra de expectativas" do ouvinte, só existe em função de um profundo e consolidado quadro de estruturas e memórias repetitivas.

O material exposto pelo Huron explica facilmente esses fenômenos. Música é rigorosamente aprendizado. Não existe nada parecido como "música natural". Até a percepção direcional do som é uma construção mental.

Uma pessoa "não entende" ou "não gosta" de música clássica por dois motivos básicos. O primeiro, trivial, é que não foi educada para ouvir e aferra-se ao que assimilou, geralmente por motivos extra-musicais (vida social, vida emocional-sexual, mitologias do arrebalde, opinião alheia, etc). O segundo é porque realmente não quer aprender nada - o que é mais comum do que parece. Bertrand Russell disse certa vez "o ser humano não quer conhecimento, quer certezas". Dispor de muito conhecimento diminui o teor de certezas de uma pessoa - para muitos isso é ruim.

Trechos selecionados. Capítulo 13

"Usando a teoria da informação, poderíamos dizer que aquilo que distingue uma obra de outra são aqueles elementos que possuem uma entropia mais elevada que em outras obras, mas uma baixa entropia no contexto da própria obra. Dito de outro modo, devemos ouvir passagems ou aspectos que (1) não são ouvidos em outras obras, mas (2) são ouvidos frequentemente na própria obra. Formalmente, podemos definir um "aspecto distintivo" como aquelas passagens ou figuras que exibem uma elevada razão entre a entropia externa e interna. Tal medida de "distintivïdade" foi usada há muito tempo em estilística quantitativa, como as usadas na pesquisa para determinar a autoria de um texto" (pág 262).

"Gostaria de sugerir que a distinção feita pelas pessoas entre uma "obra" e um "gênero" não tem base objetiva. Não há nada no mundo externo que delineie essas duas classes de experiên cia auditória. Não existem 'gêneros naturais'. Antes, a distinção entre "obra" e "gênero" é um fenômeno completamente subjetivo; é provavelmente o artefato da forma pela qual a memória humana é biologicamente organizada. Especificamente, proponho que o que distingue a uma obra de um gênero ou estilo é o tipo de codificação da memória. O que chamamos de "obra" é uma codificação "verídica" de uma memória auditiva. Se dois estímulos musicais diferentes ativam a mesma codificação "verídica" então os chamamos de versão (da mesma obra). O que chamamos um "estilo" ou "gênero" é uma codificação esquemática de uma memória auditiva" (pág 263).

Essas observações chamam atenção, principalmente, para certas obras cíclicas do Mestre, ao mesmo tempo complexas internamente e pouco numerosas em termos quantitativos. É como se Bach tivesse compreendido que o fenômeno da criação musical é mais distintivo com um conjunto limitado de experiências de alta especificidade, do que um mar de composições indistinguíveis.

"Comentadores e scholars gostam de focar na novidade. Somos frequentemente prontos a identificar os "primeiros": o primeiro uso de algum instrumento, uma técnica sem precedentes, um novo arranjo. O foco na inovação é compreensível: tanto habilidade como desvio são encontrados no que näo é usual. Mas observadores de música geralmente falham em chamar atenção para o mais característico aspecto da música em todo o mundo - sua extraordinária repetitividade. Nesse capítulo eu sugeri que uma explicação plausível para tal extrema repetitividade pode ser encontrada no principal correlato da repetição - a previsibilidade" (pág 268).

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Percepção e predictabilidade

Esse passo do livro - capítulo 12 - é um dos mais inteligentes. Consolidada a tese de que a percepção musical é baseada no reconhecimento de certos padrões estatísticos, ele examina então a relação desses padrões com os vários tipos de memória mantidos pela mente. Todos estamos a par de que possuímos vários tipos de memória, localizadas em locais diferentes do cérebro. A chamada memória "episódica", por exemplo, que indexa versões dos acontecimentos vividos. Ela é a responsável pela codificação das melodias que ouvimos muitas vezes. Outro tipo de memória é a semântica, que registra esquemas gerais. Há ainda a memória de curto prazo responsável pelas expectativas relacionadas à dinâmica musical e a chamada memória de trabalho, responsável pelas expecativas conscientes com respeito à estrutura da música.

São esses vários tipos de memória, com seus dispositivos emocionais específicos, quer permitem uma experiência sempre renovada da música, apesar de suas estruturas repetitivas. Cada compositor, cada executante tem à sua disposição uma ampla variedade de surpresas a ser misturadas e testadas. Por isso ouvimos uma mesma música e sentimentos sempre que há algo novo: porque o registro mental da experiência musical é sempre essa mistura de expecativa cumprida e surpresa controlada.

Predictabilidade é o assunto do capítulo 13. Ele consolida o material que examina as modalidades formais que pode assumir a repetição do material musical, partindo de um fato estatístico trivial e conhecido: mais de 90% da música que vc ouve, você já ouviu. Então ele descreve a obediência a esquemas de produção da antecipação melódica, rítmica e à regularidade dos esquemas harmônicos.

Com o uso de uma ampla amostra de música barroca ele mostra, por exemplo, que o acorde V será seguido pelo I em 79% dos casos; o inverso é registrado em 38% dos casos:

"Em geral, peças individuais de música popular fazem uso de menor variedade de acordes do que é típico da música barroca. Não é incomum para uma melodia pop emprega apenas dois ou três acordes diferentes. Contudo, música popular em geral recorre a uma palheta mais variada de acordes. Aproximadamente 30% dos acordes de música pop são sétimas ou nonas, comparados aos 15% da música barroca.. (... ) Outra diferença significante entre a harmonia barroca e a pop é o uso de inversões de acordes. Aproximadamente um terço de todos os acordes na música barroca não estão na posição de raiz, enquanto apenas 10% dos acordes pop são invertidos (... ) com maior variedade de progressões harmoônicas, alguém poderia supor que a harmonia pop é menos previsível que a barroca. Isso é verdade para a zero-ésima e para a primeira probabilidade do acorde, mas não para transições de ordem superior. A maior parte das harmonias pop empregam uma progressão de 4, 6 ou 8 acordes que é repetida cíclicamente, de acordo com a estrutura das estrofes (...) Na verdade, a reduzida predictabilidade esquemática das progressões harmônicas do pop são compensadas por sua elevada predictabilidade dinâmica das progressões" (págs 252-253).

domingo, 21 de novembro de 2010

Intenção estética

Nesse ponto, capítulo 11, Huron generaliza e consolida todos os indícios experimentais do apredizado estatístico do ouvinte, suas expectativas harmônicas, tonais e rítmicas, no conceito de esquema. A idéia não é dele (a fonte é Gjerdingen, 1988, "Um volteio clássico da frase: música e psicologia da convenção") e pode ser descrita como um determinado conjunto percepetual que permite a cada ouvinte "reconhecer" e distinguir melodias e gêneros.

"Sem esquemas musicais, ouviríamos obras que se parecem mais ou menos, mas não haveria fronteiras, nem classes de obras. Expectativas específicas de cada peça emergiriam para peças individuais, mas os ouvintes experimentariam todas as músicas usando um único conjunto expectacional. Expectativas harmônicas, melódicas e rítmicas representariam "grandes médias" de toda a experiência musical de um ouvinte. (pág 217).

"A disposição do cérebro de encapsular o conhecimento em diferentes domínios torna possível para músicos diferenciar estilos e gêneros (notem que o sentido aqui é fisiológico, não cultural...). A importância musical de tal conhecimento encapsulado não deve ser subestimada. Para o historiador e o etnomusicólogo, a disposição do cérebro de segregar domínios específicos do conhecimento é certamente uma causa de alívio. Se esquemas de audição não existissem, um etnomusicólogo ocidental nunca seria capaz de experimentar música de outras culturas sem a intereferência constante dos hábitos de audição do Ocidente. Da mesma maneira, sem esquemas, historiadores não poderiam experimentar as hemiolas dos motetos latinos da Renascença sem serem impressionados por sua experiência com as síncopes audaciosas do jXXz moderno.." (pág 217).

O livro revela grande honestidade intelectual. O Huron, acho eu, queria criar um framework científico para analisar certas experiências mudernas com música (nomeadamente wagner, xonberg e Strawinsky) e mostrar qual a razão propriamente percepcional para as "novidades" que traziam. Conforme foi consolidando o material experimental e estatístico, uma coisa ficou óbvia: a estrutura da música ocidental é basicamente repetitiva, baseada em um número reduzidíssimo de mecanismos, justamente porque se ajusta à necessidade evolucionária do organismo - ou seja, percepções familiares e previsíveis.

Aí a porca torce o rabo: os três citados criam justamente uma estética baseada na negação ou não cumprimento dessas expectativas. O Huron fica numa tremenda saia justa para evitar a conclusão inevitável: essa música não apenas tem uma intenção estética esquisita (ser diferente), mas produz uma reação fisológica negativa. Ou seja, não é apenas ruim; faz mal.

Aprendizado estatístico

No capítulo 8, ele trata do "efeito exposição", documentado há mais de um século. Quanto mais ouvimos uma melodia, mais gostamos dela: pelo mero efeito psicológico dela perder a "novidade". Ou seja, tanto por sua estrutura repetitva, quanto por nossa relação com os estímulos sensoriais, tendemos a gostar da música que é conhecida ou que obedece a nosso padrões de previsão.

No capítulo 9, Huron tenta identificar, com sua metodologia, as razões de associarmos qualidades aos tons da escala (tônica, mediante, dominante, etc...). Em sua opinião, quase todas essas qualidades estão diretamente ligadas ao aprendizado estatístico da música e de sua padrão repetitivo. Em uma amostra de 65 mil notas, de uma ampla base de dados de melodias em escalas maiores, o sol é de longe a nota mais usada, seguida pelo mi e pelo dó. Nas escalas menores (25 000 notas computadas), o perfil muda um pouco com a inclusão do Fá, mas Sol, Mi e Dó continuam sendo as notas mais usadas.

Ele repete o procedimento estatístico para as sucessões e cadências. O resultado é praticamente o mesmo: a imensa maioria das melodias têm a mesma organização básica. As qualidades que associamos às tonalidades (força, resolução, irresolução, etc) estão diretamente relacionadas às nossas expectativas, formadas por nossa exposição "estatística" à música.

O teste final é expor ouvintes ocidentais e balineses a melodias balineses. Os ocidentais consideram "adequadas" as notas sucessivas quando se adaptam aos padrões estatísticos da música ocidenteal; os balineses têm expectativas tonais completamente diferentes. A apreciação da tonalidade e de seu uso musical é fruto de aprendizado.

No que se refere ao "aprendizado estatístico" do tempo (assunto do capítulo 10), o argumento do Huron (ele mesmo reconhece...) é relativamente trivial. Como é fácil antever, a imensa maioria das melodias ocidentais obedece a alguns poucos padrões rítmicos. Na amostra analisada por Huron (+ de 10 mil melodias) os tempos simples, duplo e triplo, respondem por cerca de 60% do universo. Tempos irregulares (5/4, 7/8, etc) perfazem apenas 0.8% da amostra. Os experimentos com ouvintes, portanto, produzem resultados quase óbvios: a resposta fisiológica é sempre a mesma, quanto mais "conhecido" o tempo, mas fácil a previsão da próxima batida e maior a satisfação.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Mais dois capítulos

No capítulo 6 (Audição Heurística), Huron mostra como a estrutura estatística da música não corresponde exatamente à análise tradicional da notação, o que diminui muito a sua eficácia em descrever a experiência musical e, no capítulo 7 (Representações Mentais da Expectativa - I), ele começa a construir sua teoria a partir de níveis bem primários da experiência auditiva, como a habilidade de localizar um som ou a especialização de áreas do cérebro na percepção da tonalidade (como é óbvio, as frequências que existem no ar não são "trasmitidas" aos nervos pelo ouvido, elas são codificadas pelos neurônios) e sobre a relação entre audição e aprendizado.

Os experimentos relacionados por Huron levam sempre à mesma conclusão: intervalos, tonalidades, etc são objetos de aprendizado estatístico. De longe, o experimento mais espantoso é o de Janata et alii "Topografia cortical das estruturas tonais subjacentes à música ocidental", publicado em 202 pela Science. Usando mapeamento cerebral, o estudo confirma que o célebre círculo de quintas não apenas pode ser mapeado em zonas específicas do cérebro (ou seja, os centros de reconhecimento de tonalidades musiciais se estruturam espacialmente no cérebro), como é específico de cada indivíduo. Cada cortex cerebral distribui a percepção das estruturas tonais a seu jeito. Cada ser humano, de fato, reconhece as frequências de um jeito único, resultado de sua experiência auditiva única.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Música e estatística

No capítulo 5, Huron busca expor algumas estatísticas musicais básicas, calculadas apenas sobre melodias, com um uso de uma base multicultural. São examinadas cinco aspectos básicos: proximidade tonal, mudança de grau, inércia de grau, regressão melódica e arco melódico.

Proximidade tonal é definida pelo cômputo do uso de intervalos, medidos em semitons. A maioria esmagadora dos intervalos empregados flutua entre 0 e 4 semitons. Intervalos superiores a 12 semitons são raros, seja qual for a cultura musical. Há razões biológicas para isso: quanto mais próximos os sons em uma seqüência melódica, mais rápida é a sua identificação.

As estatísticas sobre ‘mudança de grau’ mostram que intervalos maiores são em sua maioria ascendente, intervalos menores são geralmente descendentes. Na música clássica ocidental, os intervalos de 5 semitons são 63% ascendentes. Só 40% dos intervalos de um semitom são ascendentes.

Quanto à inércia de grau, o movimento descendente é seguido em 70% dos casos por outro movimento descendente. O movimento ascendente é seguido por outro ascendente em 51% dos casos.

Uma regressão melódica é definida como a chance de uma mudança de direção melódica após um intervalo. Como é fácil supor, quanto maior o intervalo, maior a chance de uma mudança na direção (saltos superiores a três semitons são seguidos por mudanças de direção em 70% dos casos, por exemplo).

No caso do arco melódico, bases de dados com mais de cinco mil melodias são usados para mostrar um padrão recorrente: a elevação gradual da melodia em tonalidade e sua posterior “descida”. (Em uma típica frase de sete notas, a quarta nota está, em média 8,8 semitons acima do dó, a primeira nota em 7,8 e a última em 7,2).

Qual o ponto relevante? É que sob a imensa diversidade aparente da produção musical, sua estrutura exibe padrões supreendentemente constantes, considerada como experiência meramente sonora. Uma constatação que reforça a tese do Huron sobre a natureza "aprendida" da experiência musical e sobre a natureza do prazer estético musical (reconhecer uma estrutura familiar). Esse fato também chama atenção para a natureza da música "fácil".

Completado o estudo estatístico das estruturas musicais, Huron começa outro percurso, partido justamente do que entende ser a forma básica da audição musical: o aprendizado dessas estruturas e a capacidade da mente antecipar essa experiência.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Audição é aprendizado

O capítulo 4 começa com um exame do aprendizado da expectativa da audição musical, organizada em torno da oposição clássica: é inata ou aprendida? Como organizamos os padrões oferecidos pela experiência: por indução ou dedução?

O interessante da resposta de Huron é que ela usa a teoria da evolução para sustentar que não há diferenças fundamentais entre instinto e aprendizado, sendo cada uma delas a melhor adaptação a um tipo de ambiente. Se o ambiente é estável, o organismo desenvolve instinto; se não, o organismo desenvolve a capacidade de aprender.

Dessa maneira, a própria existência de uma audição sofisticada no homem e também da própria música mostram que a espécie desenvolveu sua capacidade de “aprender” com sons. Lidar com sons é importante em nosso processo evolutivo e partilhamos essa herança com várias outras espécies que dependem dos sons para sobreviver ou apenas viver em sociedade. A Natureza produz “sons interessados”: todos, no fundo, são processos de comunicação. Daí decorre também a chamada lei de Hick-Hyman: quanto mais familiar um estímulo, mas rapidamente ele é processado.

As conseqüências musicais desse fato são notáveis: os chamados “ouvidos absolutos”, fenômeno raro e misterioso, são mais rápidos em identificar o sol ou o dó do que o mi e o si. Os tons são identificados sempre de forma mais rápida do que os semitons. A razão é simples: são as tonalidades que estatisticamente estão mais presentes nas melodias. Ou seja, o “ouvido absoluto” está longe de ser absoluto: depende de aprendizado e repetição!

Na verdade, a percepção de tonalidade é sempre relativa e quase sempre se assume que a primeira nota será a dominante ou a tônica. Uma escala em fá, por fim, é a que exige mais tempo para ser reconhecida: justamente porque é a mais rara em termos práticos. O mesmo fenômeno repete-se para o caso das “figuras musicais”: elas são reconhecidas na razão direta da estatística de seu encadeamento. Uma passagem fá-mi ocorre cinco vezes mais do que uma passagem mi-fá; primeira é muito mais reconhecida como parte de uma “figura musical”. O aprendizado da audição é direto reflexo da exposição à música e às suas estatísticas.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Qual é a nota?

No capítulo 3, o objetivo é expor os métodos experimentais de medição da"expectativa":

1. Método de detecção da tonalidade - já mencionado na nota anterior. Se anunciamos um som, ele é mais facilmente detectado pelo ouvinte;

2. Método da produção - Pede-se aos participantes que "continuem" uma frase musical interrompida. Prova-se que o background cultural influencia bastante o padrão de resposta do sujeito do experimento;

3. Ajuste de tonalidade - Uma sequência musical é tocada e, em seguida, um acorde. Pede-se aos participantes para avaliar a adequação de um a outro;

4. Apostando na nota - O participante "aposta" na próxima nota de uma melodia;

5. Mexendo a cabeça - A resposta primária a um som desconhecido é orientar a cabeça. Instrumentos são postos no pescoço do sujeito para medir sua resposta instintiva a vários sons vindos de várias direções;

6. Ritmo cardíaco - O mesmo experimento é feito por meio de medições do ritmo cardíaco;

7. Método do tempo de reação - Basicamente, acopla uma tarefa mecânica à percepção de um estímulo sonoro. Sons familiares são mais rapidamente processados do que sons não familiares;

8. Resposta Potencial Evocada - Exame do eletroencefalograma do sujeito de experiência.

O exemplo mais curioso é oferecido pelo experimento "aposte na nota". Dois grupos de músicos, americanos e balineses, apostam na nota seguinte de uma longa melodia balinesa. Nas primeiras dez notas, os americanos produzem escolhas praticamente aleatórias, os balineses acertam bem mais. No "meio" da melodia (ou seja, quando ela fica complexa e já há material para o cérebro processar sua continuidade) a taxa de acerto da "próxima nota" é praticamente a mesma. No fechamento da melodia, os americanos continuam melhorando sua taxa de acerto, mas os balineses melhoram muito mais.

Diante de uma melodia, portanto, o background cultural do ouvinte é importante para a detecção de familiariedade, mas mesmo quem não tem esse background pode intuir a "estrutura" da melodia.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Surpresa

No capítulo 2, Huron apresenta seu modelo de forma mais precisa, por meio do conceito de surpresa e suas respostas biológicas: riso, espanto e arrepio. Tecnicamente falando, a surpresa biológica é produzida quando um organismo não prevê corretamente os eventos futuros e, a princípio, tem uma resposta negativa. Quando o conceito é aplicada à música essa resposta negativa é imediatamente controlada pela constatação de que a surpresa não ameaça o bem estar do organismo.

Restam, portanto, para a apreciação da sensação sonora as respostas de prazer, espanto e "frisson" e seus correspondentes somáticos, como os movimentos dos pelos, arrepios, mudanças nos batimentos cardíacos, riso, mudanças no padrão de respiração etc. Tudo isso é dito para assentar uma realidade fundamental: a audição musical é, obviamente, a audição de sons e obedece aos padrões biológicos com os quais analisamos esse domínio sensorial.

Por isso, aliás, os passarinhos não fazem "música pura". Sua "música" é completamente funcional e obedece a exigências reprodutivas, sociais e de defesa. As melodias passarinhescas são, na realidade, bastante complexas e embutem informações locacionais. Quando um pássaro quer anunciar sua posição no espaço, ele usa um tipo de som; quando não quer, outro.

sábado, 7 de agosto de 2010

Doce antecipação

O primeiro capítulo de Sweet Anticipation serve apenas para expor o projeto experimental de David Huron e as noções básicas do que seria uma psicologia evolucionária da percepção, ou seja, daquelas modalidades de organização de nossa relação com os dados sensoriais - antecipação, surpresa, expectativa, etc- e das possíveis valências positivas e negativas de cada uma dessas modalidades.

Do ponto de vista que interessa à música, trata-se principalmente do conceito de expectativa, ou seja, como projetamos o desenvolvimento das linhas melódicas a partir de determinados sons. Os experimentos relacionados por Huron buscam tanto examinar como o cérebro processa a música, mas também como antecipa o seu desenvolvimento.

Nesse sentido, o primeiro fato interessante é que as pesquisas com a percepção sonora mostram que quanto mais é "antecipada" a sensação de um som (por exemplo, sobre um pano de fundo de ruídos contínuos é ouvida uma frequência ou sequência de frequências) mais precisa é essa percepção (se a sequência de frequências é próxima do pano de fundo de ruidos). Em termos práticos, quanto mais familiar ou antecipável uma sequência de sons, mais clara é sua percepção subjetiva.

Ouvir um som distintamente é, quase sempre, ouvi-lo novamente - uma operação que envolve a memória.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O que é uma cantata?

Uma cantata representa, portanto, uma mensagem musical e literária verdadeiramente polifônica. Ela articula o versículo do evangelho ou do Velho Testamento, com a mais "contemporânea" poesia pessoal e termina ancorada no patrimônio comum do coral religioso. Música religiosa e formas profanas; prédica ortodoxa e prece mística. Que outra forma musical emprega, manipula e elabora tradições culturais de maior escopo, tradição e "modernidade"?

Tagliavini também chama atenção para outro aspecto interessante da arte bachiana. Desde o início do século XX (a partir da obra de Albert Schweitzer), a natureza imagística de muitas melodias permitiu várias elaborações sobre o caráter simbólico de sua música e alguns especialistas avançaram mesmo a idéia de um "dicionário" de figuras melódicas e de afetos.

Na verdade, é tomar a parte pelo todo. A cantata bachiana manipula, na verdade, vários níveis simbólicos e alegóricos. A melodia "visual" é apenas um deles, talvez a menos importante. A cantata bachiana é um concentrado semiológico, opera símbolos, alegorias, citação, duplas referências, e que dificilmente é esgotável em apenas um tipo de análise.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Dos corais

Por fim, a menção derradeira, naturalmente, cabe aos corais usados nas cantatas. Eles constituem um patrimônio literário que se estendem desde a Idade Média (Chris ist erstanden, poema original da BWV 4, data do século IX) até contemporâneos de Bach; começam com hinos latinos da cristandade, passam por lieder escritos por Lutero e pelos reformadores e termina com os mesmos poetas madrigalescos empregados por Bach.

Tagliavini apenas menciona os principais autores e fontes, uma vez que o assunto daria motivo a outro volume de pesquisa, e a criação bachiana da cantata coral - uma cantata baseada completamente no texto do coral e no uso sistemático de sua melodia tradicional.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Bach, músico e poeta

Existe também uma especulação em torno de um "libretista oculto", Christian Weiss Sr., o pregador de São Tomás. As primeiras cantatas compostas em Leipzig não têm autor definido e Tagliavini sugere que uma boa indicação seria o próprio pastor da Igreja. Mas não há prova documental dessa colaboração. Em outro capítulo, ela examina a possibilidade de que o texto de muitas cantatas tenham sido arranjados e criados pelo próprio compositor. Várias indicações concorrem para essa hipótese:

a) é frequente sua intervenção nos textos publicados pelos libretistas, com o propósito de torná-los mais simples, mais diretamente emocionais e mais adaptados à música;

b) não há outra origem possível para os textos usados nas "paródias", quando não havia como convidar o poeta original para escrever outra versão para a mesma música.

Com base no "estilo Bach", reconstruído a partir dessas correções e reelaborações, Tagliavini estuda várias cantatas sem autoria conhecida e pertencentes a períodos em que ele não trabalha diretamente com nenhum libretista conhecido e chega a uma lista de possibilidades. A lista inclui as cantatas compostas imediatamente na chegada a Leipzig - como as de número 75, 76, 70, 147, 186, - e outras mais tardias - 51, 27 e 56. Ele admite que é especulativo, mas há razões históricas e estilísticas para achar que tais textos foram compostos e elaborados por Bach.

Tagliavini é o primeiro a reconhecer que não há "grande poesia" nesses textos, mas essa possibilidade revela um envolvimento do compositor com a composição das cantatas que não permite vê-las como mero trabalho de ocasião. Nesse sentido, é uma indicação biográfica relevante.

domingo, 1 de agosto de 2010

A poetisa Marianne

De Neumeister a Picander completa-se um percurso: do músico que usava os textos produzidos, na verdade, para Teleman ao kantor que tinha seu próprio poeta, capaz de produzir versos em função de suas idéias musicais. No archive.org, aliás, há o texto completo da biografia de Picander, que é a dissertação doutoral de Paul Flossman, de 1899.

O "último libretista" de Bach é, curiosamente, uma poetisa, Marianne von Ziegler. Filha de um família de prestígio e riqueza em Leipzig, mas cujo chefe havia caído em certa disgraça, Zigler (nome de solteira: Romanus) se tornou a chefe do clã, centro de um círculo de poetas e de um salão elegante e poetisa. No mínimo nove cantatas foram musicadas por Bach, mas há indícios de que ela escreveu textos de encomenda. Zigler não era lá essas coisas como poetisa e as histórias da literatura posteriores não registram suas obras, mas a relação com Bach revela a natureza das conexões sociais do compositor em Leipzig. Zigler não era peixe pequeno, em termos sociais.

Por fim, sempre é relevante destacar que Bach buscou textos de uma poetisa para suas composições e ela não foi a única: Elizabeth Creuziger também teve seus poemas musicados por Bach.

Henrici oder Picander

O terceiro personagem nesse percurso é o popular Picander, pseudônimo de Christian Friedrich Henrici (14 de janeiro de 1700 - 10 de maio de 1764), um "poeta esfomeado", que passou muito tempo tentando ganhar a vida com poemas de ocasião e sátiras rimadas (mulheres eram um dos seus alvos preferenciais...). Depois de alguns conflitos com as autoridades em Leipzig, começou uma carreira de poeta sacro, justamente quando Bach chegava à cidade.

Quinze anos mais novo, sem maiores pretensões autorais e com boa experiência em poesia profana (talvez seja o "melhor poeta" entre os libretistas de Bach), era o instrumento perfeito para a produção de textos sob encomenda e não se deve esquecer que recebia uma percentagem dos folhetos vendidos no dia da execução da cantata.

Produzindo sob orientação direta, Picander se transforma também no libretista das peças profanas, mantendo uma longa colaboração artística com Bach, enquanto subia na sua carreira de funcionário municipal, dos correios até a posição de fiscal de impostos. Casou duas vezes, mas não teve filhos.

Das primeiras cantatas até a Cantata do Camponês (1742), são quase vinte anos de colaboração e muita gente acha estranho essa longa relação entre o antigo bandalho, "debochado" nos termos da época, e o Kantor de São Tomás. A primeira mulher de Picander foi madrinha de uma das filhas do Mestre. O fato, contudo, se alinha com a frase de Jesus: não vim salvar os justos, mas os pecadores. A fronteira social entre o maroto poeta e o sério kantor é mais visível para nós do que para eles. Por sinal, o último ciclo anual de cantatas de Picander é explicitamente dedicada a J.S. Bach.

domingo, 25 de julho de 2010

Salomon Franck

Em Weimar, Bach tem a oportunidade de travar uma relação direta com um poeta envolvido na transformação da cantata alemã na cantata madrigalesca: Salomo Franck (6 de março de 1659 – 11 de julho de 1725). Além disso, Franck, pela sua formação e história pessoal, era um artista bem mais sensível aos temas pietistas, como a ternura pessoal por Jesus, a contemplação da morte, etc. Tagliavini sugere outro aspecto importante: como a transição na obra de Franck se consuma justamente em Weimar e provável que tenha sido as próprias demandas de Bach que o levaram a adotar o modelo Neumeister.

Se for isso verdade, não apenas a cantata bachiana está na "vanguarda" da adoção da nova forma poética-musical, como ele mesmo é um instrumento dessa transformação, demandando textos com um formato específico. Ou seja, seria mais um desmentido documentado da habitual afirmação de que Bach simplesmente "aceita formas anteriores", é um "artista conservador" e outras formas de mitologia musicológica romântica, sem maior informação histórica. Bach, que ao mesmo tempo está promovendo a introdução dos modelos vivaldianos do concerto nos meios culturais alemães, está, com seu trabalho junto a poetas importantes, também alterando a configuração da poesia alemã.

Tagliavini sustenta ainda que Franck oferece a Bach um modelo estético que permite conciliar a ortodoxia doutrinária luterana com os temas pietistas, trabalhando naquele território complicado entre religião oficial, movimentos de reforma religiosa, aceitação da arte secular na liturgia, etc. Dos grandes libretistas de Bach, Franck seria aquele com maior afinidade espiritual com o Mestre, ressaltada pelo tratamento similar que ambos dão ao tema da morte como salvação*. Por sinal, ambos tiveram uma vida marcada por eventos trágicos.

* recomendo o texto de Spitta sobre BWV 31. Uma obra prima literária-teológica.

sábado, 24 de julho de 2010

Duas notas adicionais

1. É claro que a hierarquia via o assunto com suspeita e as correntes calvinistas e pietistas condenavam a novidade. Neumeister polemizou com ambos por anos e anos, às vezes com violência. O argumento em defesa da música instrumental vinha da própria Bíblia, em linhas muito similares às anotações de Bach na Bíblia de Calov;

2. Bitter, esse biógrafo de Bach "recém-descoberto", levanta, inclusive, uma conexão surpreendente: Lorenz Mizler, em correspondência com Neumeister, defende mesmo uma organização formal das partes da Cantata. Bitter suspeita que é João Sebastão que está por trás da "forma" sugerida.
Há aqui uma consequência interessante. O formato "pessoal" da cantata bachiana vem diretamente da literatura profana: o madrigal italiano e as técnicas operísticas. Neumeister, um sujeito cuja religiosidade está acima de qualquer suspeita, tomou esse modelo de empréstimo e trouxe para a cultura religiosa alemã uma modo "individual" de expressão poética.

Sigo achando o capítulo do Tagliavini sobre Neumeister um excelente moderador de conceitos. Principalmente, o malsinado "inovador". Afinal, Neumeister introduz na literatura alemã algo que não existia e  permite a inversão da prática histórica sobre a relação entre música e texto. Antes, a música seguia o texto; agora, o texto pode ser moldado à música. Também altera as fronteiras entre poesia sacra e profana.

Em suma, Neumeister é "revolucionário" para usar o blá-blá-blá moderno sobre arte. Em que livro de história se lê tal coisa? Em que livro se lê que João Sebastião, compondo a BWV 61, está na vanguarda (sic) da música e da literatura alemã??

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Neumeister

Tagliavini (Studi sui testi delle cantate sacre di J. S. Bach) é um clássico da scolarship bachiana, mesmo tendo sido publicado em 1956. Ele já tinha acesso aos estudos de datação das partituras de Schering e Durr e Tagliavini é um especialista em literatura germânica. Não lê traduções, conhece todas as fontes. Começa documentando a origem musical e literária da cantata bachiana, a partir do madrigal italiano e do moteto alemão. Musicalmente, ambas as formas tinham problemas para a liturgia: o madrigal, poesia em versos de métrica livre, tinha origem secular; o moteto alemão usava apenas os versículos da Bíblia ou os hinos protestantes. A hierarquia religiosa desconfiava do madrigal e o uso da Bíblia ou dos hinos impunha limitações à criação musical. Ela ficava limitada à métrica e à organização estrófica dos hinos.

Era preciso, portanto, um criador, um poeta que fosse capaz de tratar dos temas religiosos com habilidade, dentro das formas mais adaptadas ao uso musical (inclusive com o uso de recursos considerados operísticos, como o recitativo e o da capo). O nome desse artista é Erdmann Neumeister, o pastor de Hamburgo, autor de boa parte dos textos da cantatas de Telleman e que publica suas obras a partir de 1716.

Essa data é um bom lembrete sobre a inadequação da classificação de Bach como um "artista conservador". Quando Bach começa a compor cantatas em Weimar, a "cantata nova" é uma novidade top de linha, assim como a música de Vivaldi. Um dos melhores exemplos dessa produção é a BWV 61, com sua mistura de coros brilhantes, recitativos bíblicos e árias espetaculares.

Bach, musicando poemas de Neumeister, está, na verdade, na linha de frente da mudança na música litúrgica protestante e também na literatura em língua alemã. Os "madrigais" do poeta de Hamburgo talvez representem, na verdade, um novo gênero de arte na Alemanha. Para usar a retórica dos "cadernos de cultura" atuais, Neumeister era um revolucionário, quebrando paradigmas.




(12 de maio de 1671 – 18 de agosto de 1756)

Vivo!

Como foi dito na nota anterior, não é simples compatibilizar as duas contagens do David, mas esta pode ser a sistematização qualitativa que ele produziu. O Ricercar a 6 é divido em duas partes (segundo os compassos) ou em três grupos (exposição, primeiro grupo, segundo grupo). Segundo a idéia de parte, ela se estrutura em:

a) elaboração da escrita em seis partes;

b) elaboração imitativa da seção média do tema;

c) elaboração imitativa da seção de abertura do tema.

Esse esquema, na primeira parte, que inclui a exposição, tem mais entradas (sete contra cinco) e mais episódios. Na segunda parte, há uma elaboração adicional da seção média do tema, que serve de recapitulação do primeiro contraponto. David nota ainda que o esquema tonal das cadências é cíclico (dó-mi menor e sol), mas não o é nas entradas. O que gera uma assimetria que é corrigida ao longo da peça.

Curiosamente, de um ponto de vista meramente combinatório (seis partes, "duas metades", três grupos e seleção tonal das entradas e cadências) aponta para uma peça com a dimensão entre 99 e 104 compassos. O Ricercar tem 103 compassos.

Finalizando, é possível dizer que o charme do Ricercar a 6, diante dos elementos apresentados pelo David, não está na idéia de simetria, explorada de forma exaustiva nos cânones. Simetria, aqui, no sentido lado, de relações determinadas. O ponto espantoso é a construção dinâmica da simetria. Não se trata apenas de repetir a simetria pré-existente (mera geometria) ou deslocá-la em dois planos, micro e macro (mero fractal). Para o Ricercar, isso é pouco. Ele materializa dinamicamente os mecanismos de complexificação da simetria. A segunda parte não se desdobra ou imita a primeira parte; ela brota dele como se estivesse viva.

Preso por "mecanismos genéticos" ao "passado" (recapitulações, semelhanças de forma, etc), mas avançando no tempo por diferenciação (em lugar da improvisação do Ricercar a 3, elaborações adicionais, entradas fora do esquema tonal inicial, etc.), acho, honestamente, que o Ricercar a 6 está vivo.

http://www.youtube.com/watch?v=JPKb-QLfqAE

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Un sac de centimes

Duas observações:

a) a extensão da exposição (compassos 1 a 28) pode ser considerada longa (quase 30% de toda a peça, que tem 103 compassos) e uma pura derivação do fato de que trabalhamos com seis partes. Acho, contudo, que existe uma íntenção aqui. Música é memória e suspeito que Bach não está apenas, na exposição, marcando em nossa memória o Tema Régio, mas a estrutura com que ele é elaborado;

b) a exposição envolve seis entradas do Tema Régio (que é usado em dois pedaços separados, o salto de sétima e a progressão cromática) e com mais uma na primeira seção, temos 7 das 12 entradas na primeira metade da obra, mas essa "falta" de simetria pode ser explicada para natureza da segunda metade, que é basicamente reelaboração e recapitulação dos materiais da primeira parte (na segunda, o Tema Régio quase nunca é usado em suas tonalidades originais).

Ocorre-me aqui uma notável diferença com relação à Chaconne, cujas seções vão ficando menores e mais dramáticas na recapitulação do tema. O Ricercar oferece uma longa estrtura expositiva e vai "ampliando" sua elaboração, cada vez que se distancia em termos de elaboração e tonalidade.

"and the anomaly revealed as both beginning, and end"

Agora chegamos ao momento decisivo, onde, para usar a linguagem do Arquiteto da Matrix, the moment of truth, wherein the fundamental flaw is ultimately expressed, and the anomaly revealed as both beginning, and end." Ou seja, o Ricercare a 6.

A falha fundamental é a imperfeição relativa de todas as formas anteriores de contraponto e de exposição do Tema Régio, mas ela só pode se "revelar" pela forma perfeita, que é o Ricercare a 6. Ela é, portanto, uma anomalia. Apesar de ser o ponto final de uma série, não é como os demais elementos. Pode ser, portanto, fim, mas também começo.

O gráfico traz as informações relevantes, mas a distribuição dos compassos por cada seção do Ricercar a 6 exige alguns provisos necessários:

1. O David entende de música, mas teoria dos conjuntos não é o forte dele. Não sabe se analisa a distribuição numérica das notas ou dos processos. Tentei ser o mais fiel possível à organização que ele imprimiu.

2. Alguns compassos são contados duas vezes, por razões musiciais auto-evidentes em uma obra polifônica.


quarta-feira, 21 de julho de 2010

Ainda sobre o Allegro

"O tratamento do contraponto nesta fuga é excepcional (sim, o allegro é uma fuga..). A primeira entrada do sujeito é apoiada por uma linha no baixo casual demais para ser reconhecida como contraponto e, de fato, avança sem recorrência. O par de contrapontos da segunda entrada retorna duas vezes, com duas entradas do grupo médio confiadas às vozes mais altas. O par de contrapontos da terceira entrada retorna uma vez, com uma entrada conclusiva do grupo médio. Assim, os contrapontos da exposição são todos eles usados novamente no segundo terço do movimento" (pág 133).

"Ora, a introdução de um novo contraponto no fim do movimento é capaz de perturbar a unidade de forma. Bach elimina esse perigo ao estabelecer o último contraponto como a conclusão de um desenvolvimento rítmico. Ele começa o movimento com notas mais lentas, então adicional algumas mais rápidas, constrói com elas um episódio, amplia a recapitulação desse episódio com uma extensão em notas mais rápidas e finalmente usa esse movimento extremo como contraponto das últimas entradas do sujeito. - os contrapontos entrando após a recapitulação do contraponto previamente introduzido. Assim o movimento adquire unidade, ainda que o último par de contrapontos não tenha recapitulação, e consuma, ao mesmo tempo, o desenvolvimento com um clímax." (pág 134).

O fascinante é que, para David, essa conclusão representa exatamente uma solução para o "problema" do Ricercare a 3: a não retomada dos três últimos pares de contrapontos. Será que Bach, ao final da Sonata da Oferenda, apresenta uma "solução" para os "problemas" formais do Ricercare a 3?

terça-feira, 20 de julho de 2010

Allegro e Andante

Sobre o Allegro:

"A distribuição dos sujeitos por toda a estrutura realça seu balanço. O principal sujeito do movimento aparece nove vezes: uma vez na flauta e no violino em cada seção, exceto a terceira, e uma vez no baixo, no exato centro da forma. O Tema Real aparece seis vezes: duas vezes no baixo, na segunda e última seções, uma vez no violino, no centro exato da forma, e uma vez na flauta, no início da recapitulação. Assim um verdadeiramente magnífico equilíbrio é conseguido. Bach raramente criou uma forma com simetria mais estrita. Ele deve ter planejado o movimento deliberadamente de tal forma para que fosse uma perfeita peça central do grande todo, do qual era parte". (pág 122).
 
Sobre o Andante:


"Esta construção única é tornada ainda mais interessante e convincente por meio de seu tratamento de padrões métricos. Das cinco partículas introduzidas antes da abertura da recapitulação, somente duas mostram regularidade métrica: a primeira e a seção contrastante, que não é objeto de recapitulação. Todas as partes da recapitulação, de outro lado, concordam com a norma métrica estabelecida na abertura do movimento. Dois dos padrões irregulares contidos na arsis da forma são em seguida ajustados e o terceiro equlibrado por uma contraparte métricamente regular; assim uma exposição predominantemente irregular é retomada por uma completamente regular recapitulação" (pág 127).

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Sonata

Nas peças da Sonata, o Tema Real tem uma presença mais livre e assim acontece no primeiro movimento, o Largo. Tecnicamente, são três grupos de 16 compassos, a primeira parte com repetição, uma segunda com contraponto e uma terceira de recapitulação. O Tema Real surge principalmente no baixo.

Bach, justamente por usar mais livremente o TR, escolhe, a cada movimento, uma "assinatura" diferente. No caso do Largo, é o salto de sétima da primeira parte do tema. Também usa variados formatos para denotar complexidade crescente. Na segunda seção, o primeiro motivo retorna, mas invertido. Na terceira seção, recapitula-se a primeira, com inversão na entrada dos instrumentos. Conclui David:

"No conjunto, o movimento exibe uma maravilhosa combinação de liberdade e regularidade: tendo o caráter de livre fantasia é, ao mesmo tempo, uma obra prima de estrtutura formal. Isto é particularmente conveniente para constituir um "prelúdio" (que é seu caráter na sonata) de uma fuga. Sua relação com o Allegro seguinte é enfatizada por um nexo temático, pois o último de seus motivos principais é usado no Allegro sob os mais variados padrões." (pág 117).

Note-se aqui um detalhe maravilhoso. Para iniciar sua Sonata, o Mestre reduz, obviamento, o uso dos mecanismos estritos da polifonia. Não há inversão formal, aumentação, espelhos e coisas que tais. Entretanto, ele vai usar os mecanismos latos da polifonia: a assinatura temática, a relação sugerida, a imitação, etc. Mesmo quando a peça não é polifônica, ela a emula, mesmo no mais galante dos formatos.

Trata-se de uma citação? De uma ironia? De uma homenagem?

domingo, 18 de julho de 2010

Criatividade barroca sem o controle da razão

Os três elementos do Ricercare a 3 são justamente os três elementos facilmente visíveis na comparação com a função y= ln(x)*10. Ele é uma espécie de Bach em estado original, criatividade barroca sem os controles da razão.

A chamada Primeira Seção (compassos 1-37) vai expondo normalmente as três partes com as entradas na ordem habitual tônica-dominante-tônica e em ordem descendente. Um motivo "d" em staccato é introduzido para realizar o contraponto com o tema. A primeira seção, portanto, apenas "abre os trabalhos".

A Segunda Seção (compassos 38-86) inclui também três entradas do sujeito, mas agora em ordem ascendente, na sequência dominante-tonica-subdominante e mais espaçadas. O próprio Tema Real aparece disfarçado na primeira entrada. A segunda entrada também simula episódios que não realiza. A terceira entrada termina com uma "falsa cadência". A elaboração já se mostra bem mais complexa e termina com uma recapitulação das transições imediatamente anteriores.

Aí a Terceira Seção (87-140) anuncia vai ampliar a recapitulação para alcançar as formas expostas na primeira parte da Segunda Seção, mas ele introduz a chamada "fantasia" (105-128), que inclui imitações na oitava, modulação, o sujeito "a" em diminuição, sequência cromática no baixo e o retorno do motivo cromático em imitação na oitava.

Ou seja, Bach inclui todo um trecho destoante da estrutura quadripartite e fora do centro de simetria da peça. É como se a mera insinuação de uma recapitulação não bastasse e a imaginação se libertasse, mesmo dentro da mais estrita organização. Por fim, a fuga então retorna ao seu padrão normal, depois da fantasia, e os vários episódios agora incorporam "reminiscências" (é como as chama David) da mesma.

A Quarta e última Seção (141-185) traz as três entradas do sujeito na mesma ordem da primeira seção, mas separadas como na segunda seção. Todas três com o mesmo par de contrapontos. Assim, certas conexões entre a segunda e a quarta seção suplementam as relações mais fortes entre as seções 2 e 3 e entre 1 e 4.

O prodígio barroco vai não apenas promovendo e ampliando as conexões entre suas várias partes (ou seja, dissolvendo suas próprias identidades), mas incorporando a "fantasia", que nada tinha a ver com o plano sugerido pela exposição da obra.




sexta-feira, 16 de julho de 2010

Duas lições em uma

David passa, no capítulo 8, a uma análise dos dois Ricercares e da Sonata. Desde logo ele nota que o Ricercare a 3 foi mantido, na versão publicada, com a mesma "fantasia" (um trecho mais livre dentro da divisão em quatro seções e fora da simetria global do Ricercar) criada na improvisação diante de Frederico II. Bach não "corrigiu" a versão e há bons motivos para crer que estamos ouvindo (na maior aproximação possível) a peça que foi "improvisada" diante de Frederico II. Fica também realçado outro aspecto estrutural da Oferenda: ela exibe não apenas uma progressão de complexidade do Ricercare a 3 ao a 6, mas também a progressão de um contraponto improvisado a um contraponto estudado.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Plano original

No capítulo 7, David, que está oferecendo a primeira edição "corrigida" da Oferenda (1945), expõe sua hipóteses para a ordem original das peças. O assunto parece de somenos, mas não é: o próprio editor (Schubler) confundiu-se na publicação e não existe mais o manuscrito original (apenas do Ricercare a 6). Usando a cópia dedicada a Fred II, depositada na biblioteca da princesa Amália e depois transferida à Biblioteca Real Prussiana, ele restabelece o plano original e corrige uma impressão criada logo por Spitta, que não reconhecia na Oferenda uma obra unificada.

David também recupera a cronologia das soluções para os cânones, cujo ponto inicial é obra de um discípulo tardio de Bach ainda em 1763. Até a primeira publicação acadêmica da Oferenda, realisada pela Casa Peters, em 1937, ele registra quase duzentos anos de análise mais ou menos contínua do material da Oferenda - uma demonstração de quanto a "fama" de Bach é uma questão relativa. A Oferenda
que ouvimos hoje, uma obra integral, organizada, simétrica, executada com uma correta análise histórica, data, portanto, da edição Hans Theodore David, de 1945. Mesmo a edição Peters (1937) inclui marcações de dinâmica e ornamentos não originais, introduzidos pelo editor.

Nota delicada: o manuscrito do Ricercare a 6 foi preservado por Carl Phillip Emmanuel, que o guardou até a sua morte. A partitura foi leiloada junto com seus bens em 1791, adquirida por outro aficcionado por Bach e enfim doado à Biblioteca Prussiana. Que Deus preserve o bom nome de Carlos Felipe, filho de João Sebastião!

sábado, 10 de julho de 2010

Sobre ornamentos

A tarefa de David é muito facilitada, pois o Mestre escreveu uma tábua de ornamentos no Pequeno Livro de W.F. Um pequeno trecho do sua análise, contudo, merece transcrição:

"A execução de ornamentos na performance moderna deve ser historicamente correta, mas também artísticamente convincente. Ornamentos devem ser improvisados para embelezar e, portanto, devem manter um caráter irracional. A maior parte das explicações de ornamentos dadas por contemporâneos são racionalizações, tentativas de expressar ritmicamente padrões livres com sinais de musica estritamente medida; tais realizações vão soar pedantes ou aritificiais a não ser que se sejam apresentadas com uma certa irregularidade" (pág 75).


quinta-feira, 8 de julho de 2010

Sem bater mais forte nas teclas

O capítulo VI trata da interpretação da Oferenda e as observações de David  - o livro, na verdade, é a peça introdutória de sua edição da partitura - são muito interessantes.

Sobre o tempo: mais uma vez, apenas os movimentos da sonata têm indicação de tempo. As demais peças seguem por conta do executante, ainda que as indicações dominantes sejam 2/2 e 4/4 (mais o primeiro). David invoca também o testemunho de Forkel, que sugere a preferência de Bach por tempos rápidos. Na prática, ele sugere que o tempo deve ser escolhido em função dos mesmos fatores determinantes na escolha da instrumentação: depende do que se quer realçar e com qual combinação de instrumentos.

O mesmo vale, em menor medida, para a dinâmica. Nesse caso, David recomenda um estudo das práticas barrocas (pág 61) e o completo abandono das sugestões românticas. Lembra ele que o compositor distinguia os momentos especiais de suas composições por figuras melódicas e harmônicas e não batendo mais forte nas teclas*.

Em suma, David sugere estudo, estudo e estudo, pois mesmo a Oferenda foi iniciada em um pianoforte e com a intenção de emular a música galante. O intérprete estaria autorizado a imaginar mudanças de sonoridade aqui e ali.

* uma pequena nota pessoal: como eu gosto de Bach...

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Pela voz humana

“Estas fugas, certamente, foram escritas para o cravo, mas devem ser vistas como obras primas do entrelaçamento das linhas do contraponto, antes do que meios para exibir a qualidade de um instrumento em particular. Elas podem ser efetivamente tocadas em qualquer instrumento de teclas ou por cordas e mesmo, em alguns casos, bem podem ser executadas pela voz humana”.


A. Madeley Richardson. Auxílio para a Escrita da Fuga. Nova York, 1930, pág 6.



terça-feira, 6 de julho de 2010

Hipóteses

São dois os níveis de abstração já expostos:

O Tema Régio é apenas uma base sobre a qual são construídas relações lógico-musicais, dos Cânones, à Sonata, até o Ricercare, que, por sua vez, embute, em si mesmo, a Sonata e os Cânones. Como a fita de Moebius, a Oferenda se estende sobre si mesma e tem sempre a mesma face. No limite, a música, como matéria sensível, tende a zero pois o relevante é a relação entre as peças.

A instrumentação não define a personalidade timbrística da Oferenda; é apenas o veículo material de uma de suas dimensões (o contraponto, o conjunto, o ricercare). A instrumentação é um ponto de vista, de onde contemplamos a Oferenda. Está aberta, portantos, aos instrumentos do futuro e também das inteligências alienígenas. Na verdade, pode mesmo ser executada no Paraíso, cujos instrumentos desconhecemos. Aliás, Deus é a única inteligência que ouve corretamente a Oferenda em toda a sua complexidade*.

* Essa proposição é trivial, uma vez que a omnisciência divina garante a compreensão integral de todas as implicações da Oferenda. Se, contudo, a composição é fruto do livre arbítrio do compositor, Deus não pôde interferir em sua criação. De alguma maneira, ouviu, ao menos pela primeira vez, a Oferenda.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Três versões da Oferenda

Há três sugestões específicas para a instrumentação:

1. Se o objetivo é apresentar a Oferenda "como um todo", sugere flauta, cordas solo e acompanhamento ao teclado;

2. Se o objetivo é executar os Ricercares ao teclado, sugere teclado solo, flauta, cordas solo e orquestra de cordas;

3. Se o objetivo é realçar a estrutura do contraponto, sugere, flauta, instrumentos de sopro, cordas solo e acompanhamento ao teclado.

É curioso registrar que, mesmo do ponto de vista da instrumentação, essa vaca sagrada da modernidade, com suas orquestras socialistas e virtuoses, a Oferenda é absolutamente flexível, podendo ter suas dimensões realçadas ao gosto do quem toca ou de quem ouve. Não existe uma audição de base, da qual poderiam ser feitas versões. Tudo é versão.

domingo, 4 de julho de 2010

Duas explicações

H.T. David percebe, obviamente, a natureza complexa da Oferenda e oferece uma explicação trivial e outra bem mais interessante.

Do ponto de vista da mera trajetória criativa, ele considera a Oferenda uma peça complementar da obra publicada de Bach, ou seja, "mais um" Clavier-Ubung que, nesse caso, se estende para uma peça instrumental. Em favor de David deve ser dito que mesmo ele percebe a contradição dessa classificação: como poder ser "mais um" Clavier-Ubung se envolve uma peça de câmara?

Quando inverte seu foco é que oferece uma análise interessante. Tomando como ponto de partida a idéia de Ricercar (mais que uma fuga, uma demonstração dos vários usos possíveis de um tema), David sugere que toda Oferenda, na verdade, é um grande Ricercar. Ainda que essa idéia seja uma mera decorrência de seu caráter fractal (aspecto que passa ao largo da análise de David...), é uma sugestão criativa que vai muito além do "'lá vai, lá vai, lá vai, lá vem, lá vem, lá vem" da análise musicológica mais comum.

"Ainda assim, o uso da palavra é espantoso. Um ricercar, não importa quantas seções sejam incluídas, era uma composição, consistindo de vários movimentos conectados, enquanto a Oferenda Musical apresenta-se como uma série de 13 composições separadas. Mas para Bach a coerência entre as seções parece tão forte quanto a separação física entre elas; e assim ele pode se referir a toda obra (a sugestão está no acróstico) como um ricercar - indicando que ela existia em sua mente como se fosse uma composição em completa continuidade, um todo perfeitamente unificado" (pág 43).


sábado, 3 de julho de 2010

Da ubiquidade

O que estamos realmente ouvindo quando ouvimos um cânone da Oferenda? Muito do seu sentido musical não é determinado apenas por sua própria estrutura, mas por suas relações com os demais cânones e também com a sonata e também com os ricercares. A melodia material, a sequência de sons que atinge nossos ouvidos, é apenas o primeiro elemento do processo de compreensão da pergunta: o que é a Oferenda?

Uma resposta precisa levar em conta alguns fatos importantes:

1. O tema da Arte da Fuga é do compositor; o tema das Goldberg, também; o tema das Variações Canônicas, é um coral de Natal. O tema da Oferenda não é tradicional, nem autoral, veio de Fred II ou de C.P.E ou de ninguém - foi inventado. A "autoria" da melodia, portanto, é irrelevante para a obra construída;

2. As Variações Goldberg e as Variações Canônicas são compostas para um instrumento; a Arte da Fuga também. A Oferenda embute uma Sonata e não tem uma instrumentação determinada;

3. As Variações Goldberg são o fruto de uma encomenda; as Canônicas, são uma peça para colegas músicos; a Arte da Fuga também foi composta para uma comunidade de especialistas. A Oferenda tem um só destinatário, mas ele não encomendou a obra;

4. Ela começa com uma peça (o Ricercare a 3) que é objeto de uma improvisação e termina com o Ricercare a 6 que é o fruto da reflexão. Se olhamos com atenção, todos os procedimentos composicionais estão espalhados pela Oferenda: improvisão, reflexão, solo, conjunto, fuga e música galante, etc... O Tema Régio está em "todos os lugares da música", aparece no mais seco cânone e no mais charmoso adágio, inteiro ou em pedaços, como cantus firmus ou como parte do contraponto.

O que está em "todos os lugares"?



sexta-feira, 2 de julho de 2010

Onze dimensões

Por fim, David não oferece nenhuma informação adicional sobre o Ricercar e sobre a Sonata, além do que é convencional: (a) o termo ricercar, cânone no passado, passou a designar formas livres de contraponto e seu uso na Oferenda sinaliza uma certa intenção erudita; (b) a sonata, na forma "de igreja", em quatro movimentos, revela-se "conservadora na forma, progressista no estilo". O emprego da flauta é uma evidente homenagem ao Rei.

Para além, contudo, da soma de suas partes, o que é a Oferenda?

David tenta responder a essa pergunta mais geral (ele também é autor de uma pesquisa original sobre as coleções musicais até o século XVIII), mas não consegue evitar a impressão de estranheza. Até 1750, a imensa maiora, a gigantesca maiorias de coleções musicais (incluindo aí os WTCs, as coleções de suítes, etc) são organizadas segundo o eixo da tonalidade. Essa é a variável relevante. As exceções são raríssimas, mas, dentre estas, estão quatro obras do compositor: as Goldberg, as Variações Canônicas, a Oferenda e a Arte da Fuga.

Todas elas são baseadas na idéia de estrutura e não na diversidade de "sabores" da tonalidade. Como não é difícil notar, esse último princípio impõe sérios limites para a lógica de uma coleção (as peças individuais são muito diferentes umas das outras..). Em contrapartida, no primeiro caso, as possibilidades criadas pela mera combinatória são exponenciais.

Seu uso sugere, por exemplo, a idéia de um "meta cânon": uma vez que cada cânone é regulado por uma lei matemática (uma função) eles podem ser somados e transformados uns nos outros, mesmo que sejam inexecutáveis.

Há outras implicações. Escreve David sobre a coleção de cinco cânones "o primeiro deles representa a forma mais simples de cânone; o segundo contém um elemento de contraponto; o terceiro contêm dois. Assim, a série resultante pode corresponder matematicamente à série do número, do quadrado e do cubo. Foi o desejo de estabelecer essa progressão lógica que levou Bach a propor um cânone tanto em moção contrária como com aumentação sem ter primeiro demonstrado este último procedimento sozinho". (pág 36).

O esquema pode ser ainda complicado por referências estritamente musicais. No primeiro grupo de cânones, o primeiro, mais simples, sugere o ritmo de uma abertura francesa (pois está iniciando a coleção...). O último cânone, que enfeixa o "número, o quadrado e o cubo", é modulado, maior e mais complexo, oferecendo um "finale" para o primeiro conjunto. No segundo grupo de cânones, a última e a primeira peça, em vez de distintas, como no primeiro, são aparentadas: o cânone em espelho e a fuga canônica.


quinta-feira, 1 de julho de 2010

Espaços métricos

No capítulo II, David trata do Tema Régio sem maior especulação sobre sua origem e nota, ao contrário de observações recentes, que favorece o tratamento contrapontístico. Ele expõe também, de forma preparatória, a organização geral da Oferenda: (i) o Ricercare a 3; (ii a vi) cinco cânones (sem a presença do tema como "parte"); (vii) O Trio Sonata; (viii a xii) mais cinco cânones (com o tema como parte); e (xiii) o Ricercare a 6 vozes. Também é trivial o registro de sua simetria (ainda que o número de cinco cânones sugira alguma estranheza), articulada com a complexidade progressiva.

É no capítulo III que David apresenta uma descrição individual das peças. Tomando como suposto o conhecimento geral do que é um cânone, uma sonata ou uma fuga (um ricercare é nada mais do que isso...), sua exposição começa pelos cânones (todos são "a 2").

No primeiro grupo:
ii. Cânone na oitava dupla (perpétuo);
iii. Cânone em uníssono;
iv. Cânone em movimento contrário;
v. Cânone por "aumentação" e movimento contrário;
vi. Cânone por modulação (completando um círculo de quintas).

No segundo grupo:
viii. Cânone em espelho;
ix. Cânone do "caranguejo";
x. Cânone em movimento contrário;
xi. Cânone a 4
xii. Fuga canônica.

Note-se que, no primeiro grupo, todos os cânones são construídos sobre uma medida de "distância" entre as partes: a dupla oitava, o uníssono, o movimento contrário (a distância "interna" entre as notas), o movimento contrário com aumentação (a distância interna entre as notas, mais a distância entre as quantidades das notas), concluíndo com o cânone por modulação (distância entre as tonalidades possíveis).



Uma descrição matemática do Tema Régio

Se fixamos um valor qualquer para a distância entre cada nota do Tema Régio e produzimos uma soma cumulativa da medida absoluta dessa distância, temos uma função definida por 19 pontos (21 notas menos duas distâncias, no início e no fim). Sua forma é:



Nota: o último ponto da soma cumulativa é 29 e qual é o logaritmo natural de 19 (o número de pontos) multiplicado por dez?

O Tema Régio, sob qualquer ponto de vista, é uma construção curiosa. Musicalmente, suas notas iniciais e finais são triviais e o que conta mesmo é a preparação e a própria progressão cromática (todas as notas estão no tema...), cujo efeito melódico é altamente problemático, como sabemos.

Uma descrição matemática da distância das notas e, portanto, da densidade da informação necessária para construir sua imagem auditiva apenas ressalta a natureza logarítmica de sua evolução: uma "rápido" avanço sobre o início da reta dos x, seguida por um posterior declínio na taxa de crescimento. Ela expande-se e, em seguida, reduz sua taxa de expansão.

Ainda mais interessante (um ponto especulativo) é que, dada sua organização formal, o Tema Régio pede exatamente um tratamento matemático de sua forma. Melodicamente, não tem nada de especial a oferecer. Se alguém olhasse apenas a forma do tema régio na partitura e buscasse uma associação matemática seria atraído por uma função trigonométrica, como o seno, mas todas melodias conhecidas no mundo são "trigonométricas". Por outro lado, a soma cumulativa da distância entre as notas (que mede a quantidade de informação que assimilamos para entendê-la) revela o efeito real da progressão cromática: uma taxa de expansão constante que, no global, funcional como uma redução da primeira tríade e da sétima menor.

Da posição de um livro na biblioteca

Como seria de se esperar em uma obra de sua época (1945), Hans Theodore David parte do relato historicamente convencional, construído em torno do material publicado pela biografia de Forkel. Não há qualquer leitura ambígua que se aproxime das hipóteses do livro do Gaines (The Evening inf the Palace of Reason), limitando-se ao registro convencional da estrutura tripartida e as dificuldades de se compreender a diversidade editorial da apresentação da obra.

O autor é observador o suficiente para evitar certas armadilhas. O silêncio real sobre a Oferenda nada tem de especialmente significativo. Não era comum, para monarcas, responderem formalmente ao recebimento de obras dedicadas; também não era necessário estar nas contas da corte para que tenha havido um pagamento. Não há porque se deduzir que a obra foi ignorada (ou apreciada) por Frederico, que a destinou à bibliteca da princesa Amélia, uma musicista não desprezível.

De todo modo, uma obra dedicada ao contraponto, enigmática e não convencional certamente não seria prioridade para Frederico II. O aspecto biográfico mais relevante é que, perto do fim da vida, Frederico ainda recordava do tema, do encontro em Potsdan e do "velho Bach".


Tema régio (1747)

Há sempre mais alguma coisa

"Tenho isso por verdade: não se pode olhar profundamente o bastante a Oferenda Musical. Há sempre mais depois que alguém pensa que sabe tudo. Por exemplo, por volta do fim do Ricercar a 6, aquele que evitou improvisar, Bach sorrateiramente esconde seu nome, dividido entre duas vozes superiores. As coisas seguem em muitos níveis na Oferenda Musical. Há truques com notas e letras; há engenhosas variações com o Tema Real, há cânones originais, há fugas complexas, há beleza e profundidade de emoção e mesmo uma exaltação nos seus múltiplos níveis. A oferenda musical é uma fuga de fugas, uma Hierarquia Intrincada como as de Escher e Gödel, uma construção intelectual que me faz lembrar, de modo que não sei expressar, a bela fuga da mente humana. Por isso em meu livro uni as três correntes: Gödel, Escher e Bach"

Douglas Hofstadter, Gödel, Escher, Bach, pág 719.