domingo, 30 de janeiro de 2011

O pensamento como fuga

Como de hábito, o capítulo 10, é um capítulo de fundamentação e trata de programas de computador. Como o livro foi editado em 1979, pode-se fazer idéia do seu grau de elaboração. Ainda assim, alguns elementos continuam sendo relevantes e interessantes:

1. Mesmo naqueles dias parecia claro que os procedimentos da inteligência não são o mero resultado da soma de operações elementares, mas da integração de vários operações diferentes. Oferece o exemplo dos grandes jogadores de xadrez, que conseguem ver à frente as melhores respostas estratégicas de forma automática. Esta pode ser a mesma habilidade de um grande compositor. Ele intui de forma automática as implicações do desenho de uma melodia. Uma habilidade descrita, no caso de Bach, por seu filho C.P.E.

2. Outro ponto importante de sua análise das implicações de uma inteligência artificial é a distinção entre sistemas "quase decomponíveis" (um time de futebol, um átomo, etc) que só existem em conjunto, mas podem ser discernidos de sistemas quase indecomponíveis, como quarks em uma partícula ou... notas em um acorde. A distinção entre esses sistemas é que permitiria "pensar em pedaços", uma vez que separa níveis de organização diferentes, com suas próprias regras. Essa separação é aquele que haveria entre cérebro e mente ou entre a música que ouvimos e a estrutura física que a produz. Nesse ponto, as analogias do Hofstadter começam a ficar bachianamente interessantes.

O conceito usado para produzir a idéia de um sistema que é resultado da integração total e ao mesmo é cada uma de suas partes é justamente o de Fuga. Que tem uma vantagem ilustrativa adicional: não basta, para um fuga, seguir as regras, ela tem de produzir um efeito não visível nos elementos que a compõe: a beleza sonora. Ele começa a sugerir que o pensamento é a "fuga" do cérebro.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O koan e a música de Bach

Novamente, são mais alguns capítulos - 7 e 8 - que poderiam figurar em livros de divulgação. O primeiro é um resumo da simbologia do cálculo de proposições (lógica formal) e o seguinte uma apresentação mais detalhada dos procedimentos da prova de Goedel, o que ele chama de "teoria tipográfica dos números". Visto do ano de 2011, trivial simples. No capítulo 9, há, ao menos, uma idéia interessantíssima: a conexão entre a idéia de incompletude de aritmética (e da lógica) e a técnica do koan pelo Budismo Zen.

Se pensarmos no exprimível de forma coerente, definido de forma lógica, como um conjunto de teoremas, o que Gödel mostrou é que existe algo fora desse conjunto sobre o qual o exprimível não tem como se manifestar. Assim, se despirmos os koan do budismos Zen de seu substrato religioso, teremos um técnica linguística de apontar para o que está além da linguagem. O koan e a prova de Göedel seriam, digamos, equipotentes.

Se o exercício deliberado do paradoxo (o budismo Zen) e se o exercício deliberado do rigor (a lógica ocidental) nos deixam sobre a fronteira do sentido que não pode ser descrito, onde nos deixa a linguagem que lhes é aparentada, a música de Bach?

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A mensagem e o mensageiro

Finalmente um capítulo realmente interessante, o sexto, e a razão é porque não trata estritamente de AI, mas de teoria da informação. Hofstadter parte da pergunta clássica: uma mensagem tem significado em si mesma ou seu significado precisa ser definido por um contexto? Qualquer resposta categórica, para um lado ou para o outro, envolve paradoxos.

Se tiver significado em si mesmo, está postulada um padrão universal de linguagem.

Se não tiver, você precisa enviar o contexto ao receptor da mensagem, o que também seria uma mensagem e assim por diante.

Uma resposta possível é abandonar uma teoria estritamente formal de mensagem e passar a entendê-la de forma mais global. Dando um exemplo, uma molécula de DNA só envia uma mensagem se estiver em um meio bioquímico próprio; um programa de computador só opera se o computador for ligado e cumprir certas operações eletro-mecânicas. Ou seja, é preciso que exista algo no hardware do universo para que as mensagens sejam lidas. Em termos práticos, para ler uma mensagem é preciso que o receptor receba também uma mensagem informando que aquilo é uma mensagem e como deverá ser lida.

Nesse sentido, um dos mecanismos mais óbvios de produzir um contexto em que essas várias formas de mensagem sejam enviadas e decodificadas são os padrões, as regularidades, etc. Pois bem, quem é o compositor dos padrões, das regularidades, das mensagens auto-referentes?

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Mais do mesmo

Nos dois capítulos seguintes, 4 e 5, temos mais discussões sobre consistência, completude e meta-lógica, assuntos hoje já meio surrados (há matemáticos russos até questionando a validade geral da prova de Gödel...), e pouca referência direta a Bach. O capítulo 4, na verdade, foi usado para introduzir o outro conceito do livro, o de "hierarquia imbricada". Ou seja, sistemas que embutem sistemas que embutem sistemas, etc. Há uma referência bibliográfica sensacional, uma história dos labirintos, publicada pela Dover, em 1970. Termina com um "diálogo" que lembra muito o enredo do filme "Inception", com suas camadas de histórias, umas dentro das outras.

No capítulo 5, o material engrossa um pouco, com foco em recursividade, mas nada de particularmente novo ou especialmente referenciado à música de Bach. Hofstadter cita uma giga das suítes francesas como exemplo de recursividade, mas o exemplo é tão evidente e tão óbvio, que não agrega grande coisa. Fica de lá para cá, com exemplos gráficos de recursividade (gráficos de computador dos anos 70...). Um capítulo para agregar materiais. Dá para fazer leitura dinâmica.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Sistemas formais

Até o terceiro capítulo Hofstdadter segue expondo apenas algumas modalidades de sistemas formais de lógica, como preparação necessária para o tratamento do "circuito estranho", ou seja, aquela modalidade de operação intelectual ou computacional que, após um número qualquer de passos, realiza uma tarefa modificando o seu contexto, sem violar as regras auto-impostas. Tal como o cânon per tonos da Oferenda, a "Cascata" do Escher ou o tipo de prova usado por Kurt Gödel. Não é difícil perceber em suas páginas um certo entusiasmo da década de 1970 com a emergência da inteligência artificial. Sobre música, especificamente, apenas homenagens a Johann Sebastian Bach.



Escher. "Cascata".

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Proporção e Relações Numéricas em Bach

O capítulo é breve, servindo apenas para Geck enumerar as teses mais radicais a favor do uso sistemático do uso dos números por Bach (caso de Ulrich Siegele) e das posições céticas. Geck é um cético: acha que o estados dos manuscritos, cheios de correções, revisões, mudanças é incompatível com tese numérica.

Em suma, existem casos evidentes do uso do alfabeto numérico e algumas formas de simetria, mas Geck insiste que eles não sustentam a tese de um Bach numerólogo, inscrevendo símbolos a cada ponto da partitura.

Respondendo, ao fim, à polêmica em torno das interpretações teológicas e não teológicas da música de Bach, Geck conclui:

"Mas, por agora, é o bastante em matéria de horizontes. A música de Bach recusa afirmações categóricas, conclusões rápidas, resumos em uma frase, não importa quão brilhantes sejam. Possa este livro terminar, então, simplesmente com a assinatura de Bach". (pág 676).

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Retórica e simbolismo

De longe, é o capítulo mais interessante dos "Horizontes" do Geck, trazendo definições efetivas sobre o tema e materiais recentes da scolarship alemã sobre Bach. Vamos por pontos:

1. Que a música de Bach esteja cheia de figuras de retórica, usadas para compor uma simbologia bem definida (ascensão, queda, anjos, canção de ninar, etc), é coisa conhecida por todos. Também é a marca de outros compositores barrocos. Entretanto, na escrita teórica do período barroco sobre música, não existe uma teoria única e definida sobre a relação entre música, retórica e símbolo.

Na opinião de Geck, a retórica musical, em Bach, não supõe uma visão restrita sobre a relação entre retórica e música. Ou seja, essa conexão que parece, a nossos olhos, tão relevante, provavelmente era um elemento menor no sua lógica de composição: "Nós admiramos esta música, afinal, não porque é arte aplicada, mas porque é arte original".

Quando comparadas com figuras retórico-musicais empregadas por outros compositores, Geck insiste que os procedimentos de Bach são muito mais sutis e menos diretos. Tome-se o o arco íris na Paixão segundo João: "Mas isto é precisamente Bach: ele não pretende fazer história com o mais belo arco-íris ajustado a uma ária, mas ordená-la de tal modo que tanto seu impacto sensorial como sua profundidade espiritual permaneçam subordinados a uma idéia musical e ofereçam a mensagem de um texto exigente de forma integral. Sua música nunca meramente imita ou descreve: está continuamente ultrapassando a si mesma na direção de um significado". (pág 664).

Depois de tocar nas teorias sobre a vaguidade, o Geck avança com comentários sobre um aspecto que, para mim, pessoalmente, são a coisa mais fascinante na obra de Bach: suas estratégias significantes. Ele toma como paradigma justamente o fato de que Bach não usa o simbólico, mas o alegórico, a legítima alegoria barroca. Citando Benjamin:

"Essa circunstância nos conduz às antinomias do alegórico, cuja discussão é incontornável, se quisermos de fato invocar a imagem do drama barroco. Cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra. Essa possibilidade profere, contra o mundo profano, um veredito devastador, mas justo: ele é visto como um mundo no qual o pormenor não tem importância. Mas ao mesmo tempo se torna claro, para os que estão familiarizados com a exegese alegórica da escrita, que exatamente por apontarem para outros objetos, esses suportes da significação são investidos de um poder que os faz parecer incomensuráveis com as coisas profanas, que os eleva a um plano mais alto e que mesmo os santifica." (págs 196-197).

Geck fecha o capítulo: "Tentando encontrar comunalidade entre todas as idéias dessa seção, retornamos ao conceito, repetidamente articulado nesse livro, de que Bach compunha de acordo com "figuras". Isto não significa figuras retóricas musicais (ao menos, não exclusivamente), mas um gênero de invenção temática: figuras que possuem qualidades inerentes, qualidade estética própria, mas também apontam para além de seu som. Uma figura tem dois aspectos: sentido e som."

Essa é a precisa definição de Benjamin para a alegoria barroca. Impor sentido a um objeto iconográfico, linguístico ou sonoro. Estabelecendo conexões que são deliberadamente convencionais, forçadas, mas cujo sentido vai além da materialidade.

Artigos da fé

Geck fecha o capítulo com os "três artigos da fé" de Bach: a homenagem a Deus em sua própria obra de celebração da criação; a música para a Paixão de Cristo ("Bach não se identificou com as históricas heróicas das figuras da ópera, mas com a história da Salvação por meio de Jesus Cristo. Isto era a emoção em sua música, compor não com um homem sábio, mas como um sensível ser humano) e o poder espiritual de sua música, que reflete a permanência e a imaterialidade da terceira pessoa da Trindade.

"A fé não pode ser comprovada e certamente não por uma obra de arte. Persiste a diferença entre a conjectura da fé cristã de Bach e a experiência universal que sua música torna possível: tal é a contingência ou a produtiva incompletude do discurso estético". (pág 659).

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Segundo "Horizonte". Bach como cristão

Neste ensaio, Geck não é tão feliz como no anterior, em termos literários, mas traz elementos para seu alinhamento incondicional com a tese do Mestre como homem de genuina fé luterana.

O primeiro e mais óbvio é sua biblioteca de mais de 100 volumes, extensa e cara para os padrões da época. Ainda em 1742, quando sua carreira como música da Igreja estava tecnicamente parada, está comprando livros de Lutero e comentários bíblicos. Por uma sensacional coincidência, os comentários de Calov, no exemplar do Mestre, foi encontrado em um seminário nos Estados Unidos, com seus comentários à margem.

O segundo é a articulação de Pietismo e Luteranismo. A princípio, essa articulação poderia parecer não exatamente ortodoxa, mas o Pietismo, nos tempos de Bach, é sintoma de uma religiosidade ativa, viva, um equivalente do movimento carismático dos dias de hoje. Mutatis mutandis, naturalmente. Curiosamente, quem ressalta esse ponto é nada mais nada menos que Nietzsche (Humano, demasiado Humano, parágrafo 219):

"Sem esta mudança sentimental profunda e religiosa, sem o som que se esvai de uma alma agitada em seu interior, a música teria continuado ilustrada ou operática".

Completando, Nietzsche afirma: "Tal é nossa dívida com a vida religiosa".

[O trecho do Êxodo comentado por Bach: "Então Miriã, a profetisa, irmã de Arão, tomou na mão um tamboril, e todas as mulheres saíram atrás dela com tamboris, e com danças. " (Êxodo 15:20)]

Ele anota devidamente que há "dois coros", o dos homens, conduzido por Moisés, e o das mulheres, por Miriam, com "tambores e danças". Ele via a polifonia vocal com precisão, fundamentada no Espírito.

Outro testemunho documental da fé pessoal do Mestre é uma descoberta recente - uma anotação sua no álbum pessoal de Johann Gottfried Fulde, um estudante de teologia e membro da sociedade de concertos de Leipzig. Ao pé de um cânon (hoje, o BWV 1077), ele escreve a Fulde: "Cristo há de coroar os que portam a Cruz". Em latim, fica melhor: Christus coronabit Crucigeros, uma mensagem musicalmente inscrita no cânon.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Horizontes

A biografia escrita por Martin Geck não traz, naturalmente, fatos novos. Seu ponto alto são os capítulos finais, chamados de Horizontes, onde examina alguns aspectos mais gerais da obra de Bach.

O primeiro capítulo tem o título “A arte de Bach” e começa justamente pela análise de sua “fama”. Quando se descarta a visão romântica sobre a “fama” de um compositor, Geck chama atenção para o fato de que a fama real de Bach, entre músicos e especialistas, é o primeiro sinal da natureza de sua arte. Sua maestria é a do contraponto, entendido sempre como sinal da ordem divina. Suas teses, mesmo quando absorvidas pela modernidade, não são totalmente modernas e, em muitos sentidos, anti-modernas.

É o caso do seu interesse em obras cíclicas, justamente a antítese da ênfase moderna na obra individual; sua busca de exaustão teórica em lugar da natureza rapsódica da música posterior.

Postado entre o antigo e o moderno, a música de Bach é menos mecanismo do que “densidade de eventos”. Ela é moderna para quem olha do período antigo e antiga para quem olha do período moderno. Intrinsecamente misteriosa, fora do lugar. Extrai beleza da criação e da contradição. Por fim – um ponto interessante da argumentação de Geck -, pode ocupar esse espaço pois está baseada em uma realidade fora da música: uma fé.

É uma arte, portanto, não burguesa, não procura libertações nesse mundo, nem uma arte individualista. Seu domínio, para usar uma expressão da matemática, é a teologia, a retórica e o simbolismo.
 
"A densidade pode ser esmagadora. A música de Bach, ainda que racionalmente planejada, por vezes parece impenetrável, mito insolúvel, tocando níveis pré-linguísticos de significado, onde a experiência não é trabalhada, mas simplesmente procede. Quando isto ocorre, o que conta não é o argumento, mas o choque e o terror, estas emoções que tomam conta do ouvinte e comovem pois não conseguem decodificar sua estrutura complexa. O resultado pode ser o riso ou a lágrima: riso por conta da infinitude da criação, lágrima diante a própria insignificância" (pág 649).

"Bach permanece o centro do pensamento musical do Ocidente. Sua música é completamente desta Terra: uma paixão é uma paixão, um minueto é um minueto. Cada uma de suas obras possui um contexto social: somento a Arte da Fuga, por definição, busca alcançar as estrelas. Mesmo o elemento religioso tem sua raiz na Terra. Ao contrário da música de Beethoven, a música de Bach não sente a necessidade de buscar justificação em si mesma: está baseada na fé. Não há um ego mortal impassível, mas um ego espiritual profundamente enraizado: vulnerável, talvez, mas inamovível." (pág 649).

"Bach sempre tinha seus instrumentos à mão - como a melancolia de Durer, que, enquanto sentada perdida em meditação ainda mantém em seu torno, em um desarranjo fantástico, tudo o que precisa para medir, descobrir, avaliar e testar as forças que mantêm o mundo. Mas isto nos leva a outro ponto: podemos entender a arte de Bach somente quando conhecemos as categorias que a informam: teologia, retórica e simbolismo". (pág 652).

sábado, 8 de janeiro de 2011

Música e retórica

O último capítulo do Palisca apresenta temas familiares para bachianos e barroquistas em geral: a linguagem da Música era a "retórica dos afetos", uma mistura das teorias sobre retórica herdadas da Antiguidade (Aristóteles e Quintiliano, principalmente...) e a da classificação das emoções humanas. Ou seja, não "emoções" em geral e abstrato, mas essa emoção, aquela emoção, etc.

O capítulo termina com a obra do "mais criativo" teórico da Musica Retórica, Christoph Bernard, capaz não apenas de descrever as figuras e formas da Antiguidade, mas de criar formas novas, em função de novas técnicas de produzir emoções.

Teoria dos afetos e imitação

Estando assentado que o propósito da música é produzir emoções, Palisca examina as diversas teorias que buscavam explicar como esse efeito era produzido. No capítulo 10, ele mostra, uma vez mais, que filósofos e músicos foram buscar suas idéias na ciência da época. Deficiente, naturalmente, mas cujos fundamentos eram, ao menos, razoáveis.

O ponto de partida era Aristóteles e suas teorias da catarse, mas prosseguia com as reflexões de Descartes sobre a relação entre as paixões e a alma. Perguntas inevitáveis vêm à mente:

1. Investiram em teorias malucas sobre as origens das emoções humanas? Não, desde Descartes, as emoções são consideradas "afecções" da vida corpórea, que podem ser devidamente conhecidas e administradas pela parte racional da alma;

2. Apostaram em alguma teoria irracionalista para explicar a razão da influência da música sobre a emoção? Não, Kircher, por exemplo, afirmava que as paixões são o produto do equilíbrio de humores, que mantêm entre si uma relação matemática. A música, que também é matemática, pode alterar ou restaurar esse equlíbrio;

Pode-se argumentar que as teorias científicas do século XVII, nesse caso, são elementares e não experimentais, mas ao menos quem pensava sobre música buscava elementos na ciência e elaboravam teorias racionalistas sobre o funcionamento da mente.

A criação artística, portanto, é uma elaboração racional de instrumentos para a mobilização de paixões humanas, perfeitamente conhecíveis e organizáveis. Não tinham como saber, naturalmente, que são o resultado de adaptações evolucionárias, trivialmente codificadas quimicamente no cérebro, mas estavam na pista certa.

Era perfeitamente possível, portanto, elaborar os catálogos de "afetos" e seus correspondentes musicais. Música era uma linguagem, tão objetiva quanto qualquer outra. Ainda na década de 1750, d'Alembert (sim, naquele tempo quem escrevia sobre música eram matemáticos e filósofos; hoje em dia...) afirmava: "Toda música que nada pinta é apenas barulho. Não dá mais prazer que uma série de palavras harmoniosas e sonoras despidas de ordem ou conexão".

Será preciso esperar o final do século para ler um textos, por exemplo, de Michel-Paul de Chabanon, que a música "não imita nada". Começava o reino dos passarinhos...

Antigos e modernos

Outro capítulo brilhante do Palisca - o nove - cujo foco é o tratamento dado pela Renascença ao fato "inédito" de que música ganhara não apenas uma profundidade histórica - havia agora um estilo novo e um estilo antigo -, mas uma diversidade de públicos (a Igreja, os círculos nobres, o público do teatro) e de formas. Um mero procedimento combinatório, envolvendo os estilos, os públicos e as formas, produzia uma grande variedade de abordagens e gêneros musicais. O que fizeram estudiosos e compositores para lidar com tal diversidade?

1. Inventaram alguma teoria evolutica maluca para desprezar o pasado e dizer que o presente é a melhor coisa que existe? Não.

2. Produziram alguma ideologia maluca para dizer que a música para o teatro é "melhor"do que a música para os círculos nobres? Que é mais democrática? Não.

3. Produziram algum nacionalismo de galinheiro para dizer que a música alemã é melhor que a francesa que é melhor que a italiana? Não.

Nada disso, gente ilustrada e sofisticada como Marco Scacchi, Athanasius Kircher, Pietro Pontio escreveram justamente que cada um desses gêneros e estilos tinha sua excelência própria, sua perfeição própria. O verdadeiro músico-intelectual é aquele que busca excelência em todos eles, pela busca do conhecimento mais amplo possível. Foi essa abordagem que permitiu a multiplicação de gêneros e ídéias que, segundo Palisca, garante a longevidade da música Barroca.

Se alguém no século XVI, tentasse convencer um erudito como Athanasius Kircher que a música do passado deveria ser descartada e que a música evolui, receberia, no mínimo, vaias dos estudantes...

Música e descoberta científica

O capítulo 8, até aqui, é o mas fascinante. Ele vai mostrando como o estudo da música se conecta com a pesquisa científica nascente e como as experiências com o som revelam os erros das teorias "matemáticas' herdadas da Antiguidade. Para "dobrar"uma oitava numa corda, é preciso mais do que o dobro do peso, é preciso o quádruplo. Em uma coluna de som, é preciso o "cubo" das medidas e não o dobro ou o quadrado. A produção do som nunca é "limpa": uma corda, um cilindro produzem outras frequências além da fundamental. Os intervalos nunca são perfeitos. Ou seja, toda a ciência "musical" da Antiguidade era baseada em malabarismo com números e não com observações da natureza.

O discurso sobre a Música entrou, portanto, na vanguarda do pensamento científico e, de forma quase lírica, com a ajuda de Vicenzo Galilei e seu filho, Galileu Galilei, cientista, filósofo e músico amador. E a lista de escritores sobre a física da música nas décadas seguintes inclui Robert Hooke, Huygens e Descartes. Ao final desse processo, a música estava livre da herança da Antiguidade e sua base estritamente científica e experimental consolidado: o caminho aberto para formular, em um novo contexto, uma teoria da expressão musical. Ela iria seguir, como sabemos, o caminho da retórica e da lógica.

Esse capítulo produz alguma melancolia, pensando nos séculos posteriores. Na transição do século XVI para o XVII, a vanguarda do pensamento sobre música é composta pela elite científica da Humanidade. As questões e propostas da Antiguidade estão sendo resolvidas com experimentos, por gente do porte de Galileu, Christian Huygens ou Isaac Newton... Galileu compõe música para testar suas teorias sobre o temperamento e os intervalos. Hoje em dia...

Teorias da monodia e música dramática

A crítica humanista à polifonia herdada da Idade Média foi acompanhada, no plano prático, pela emergência da "música dramática", as primeiras formas de canto acompanhado e das quais derivariam madrigais, recitativos, árias e óperas. Havia a reividicação de imitação da Antiguidade, sustentada pela tese de que comédias e tragédias gregas eram cantadas e pela sugestão de que a música era capaz de produzir emoções específicas.

Sim, o argumento, mesmo baseado em uma visão incorreta da música na Antiguidade, é familiar: uma música mais simples, mais ligada ao texto, monofonia, "estilo expressivo". A partir da Itália, o novo estilo foi se espalhando pela Europa, com variações específicas na França (ênfase na associação com o texto metrificado) e na Inglaterra (ênfase em ritmos dançantes). Na Itália, a translação da produção musical sairia de Florença e Mântua para Roma e depois para Veneza, onde uma cultura burguesa criaria as condições para a emergência da ópera no início do século XVII. Por sinal, Veneza não inventa apenas a ópera, mas o negócio moderno da música, o teatro com camarotes alugados, o ingresso individual e os "efeitos especiais" (iluminação, figurinos, adereços, alegorias, etc). A tal ponto, sustenta Palisca, que por volta de meados do século XVII, a "música expressiva" começaria a influir também a música religiosa.

Reação humanista diante da polifonia

Nesse breve texto, Palisca trata de outro aspecto da crítica humanista à música medieval. Após tratar os modos como conceitos obsoletos, ela voltou sua atenção à música polifônica. Os argumentos são familiares e espelham fórmulas que veremos a partir de meados do século XVIII:

1. a polifonia seria excessivamente complexa e elaborada para o culto de Deus. Seria um desvario, às vezes intelectual demais, às vezes sensual demais, ofensivo à seriedade do culto religioso;

2. a competição religiosa com as práticas da Reforma - o canto congregacional - lembrava ao mundo católico que a música deveria estar ao alcance do fiel;

3. O uso de melodias seculares era censurável;

4. Era evidente que tão elaboração não obedecia aos padrões da Antiguidade, sendo condenada por parte dos humanistas.

Nesse ponto, Palisca lembra, o público envolvido na discussão pública sobre música já deixara o círculo dos musicistas e dos intelectuais e professores ligados mais diretamente à teoria, para envolver uma primeira forma de crítica musical.

Modos e gêneros

O objetivo de Palisca nesse capítulo 5 é documentar outra corrente importante nas teorias renascentistas sobre música: o esforço de compreender os modos da música medieval. Baseadas em escalas, a música medieval oferecia uma oportunidade enganosa de análise: sua assimilação com os "modos" da Antiguidade. Os primeiros trabalhos, portanto, buscavam encontrar algum princípio sistemático para organizar os modos da música medieval, estabelecendo paralelos com as listas expostas nas obras da Antiguidade.

Ficaram logo evidentes, contudo, duas coisas: (a) as teorias musicais da Antiguidade eram muito mais variadas do que pensado inicialmente e uma parte dessas obras não estava organizadas em torno de modos (b) as associações entre modos e emoções e entre modos medievais e antigos eram largamente arbitrárias.

Diante dessa maçaroca teórica, a reação inevitável foi retornar a um estudo da música em termos contemporâneos, com foco nas técnicas polifônicas. Instalou-se a tendência de reduzir os oito ou doze modos da Antiguidade e sua tradução confusa pela Idade Média aos dois modos que conhecemos - maior e menor (pág 95). Na virada do século XVII ao XVIII, a passagem estava concluída nas obras de Charles Masson e consumada pelo Tratado da Harmonia, de Rameau (1722).

Obedecendo aqui a um verdadeiro paradigma evolucionário, pode-se ver que, ao longo desse processo de racionalização, vão gradativamente desaparecendo os experimentos de criação de harmonias especíais (cromáticas, enarmônicas, etc) e de instrumentos excêntricos, desenhados para executar essas harmonias. O sistema temperado, por tanto, é o resultado final de um processo de análise e estudo de dois séculos, rigorosamente experimental e moderno no sentido em que abandona a referência na Antiguidade ou na experiência medieval.

A música clássica que conhecemos é o produto da interação de elites intelectuais e sociais, professores, cientistas, eruditos, nobres e patronos, em torno de um projeto rigorosamente racionalista, consólidado no século XVII.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A poética da composição musical

O ponto de partida do capítulo 4 é a infusão das idéias mais elaboradas sobre música, construídas a partir da redescoberta dos textos da Antiguidade e das primeiras experiências científicas com o fenômeno do som, no domínio da música prática. Ou seja, da música produzida para o mundo secular.

O primeiro aspecto examinado por Palisca é familiar. As idéias mudernas sobre autoria de melodias soariam completamente bizarras para um músico ou especialistas do século XVI. Música é um artefato complexo, produzido na imensa maioria dos casos segundo a lógica da citação, da reelaboração, da improvisação e da paródia. Criar é partir do criado, uma vez que faltavam aos homens do século XVI a ilusão muderna de que o mundo começou agora há pouco.

O artista é o artifex: aquele capaz de produzir complexidade, um novo ponto de vista, uma nova equação a partir das regras e materiais produzidos pela tradição. Por sinal, como nota Palisca, a imensa maioria da música medieval não tem autores e, mais tarde, quando tem, é bem provável que inclua material que não foi "criado" pelo compositor.

O segundo aspecto examinado por Palisca é a emergência de teorias novas sobre a expressão musical. Apesar de toda a herança pitagórica e ultra-racionalista, os autores do século XVI (Zarlino, Pietro Pontio, Mei, Patrizi...) podem até criticar as modalides mais cruas da música "imitativa", mas não ocorreu a ninguém sugerir que a música é uma linguagem "pura", sem qualquer relação com as demais artes plásticas ou com a poesia. Mesmo Vicenzo Galilei, um crítico acerbo de alguns desses procedimentos, em nenhum momento sugere que a música possa ser distanciada da expressão humana, entendida em seu sentido bem concreto.

Aliás, é justamente essa conexão que permitirá superar as visões mais simplórias sobre a música como imitação para associá-la ao domínio da gramática, sugestão, por exemplo, de Nicola Vicentino.

E aqui há um ponto sensacional que o Palisca não examina muito: de onde vem a demanda por essa nova música. Certamente não é das ruas, nem da burguesia ainda comerciante; não é da Igreja: é de uma comunidade mista de connoisseurs, nobres ou meramente intelectuais. Patronos, dirigentes de academias de todos os tipos, são esses homens o público da nova música e, claro, responsáveis últimos pelos critérios altamente sofisticados que impõe à produção musical emergente.

Palisca não se aventura nesse terreno, mas é uma óbvia conexão proposta por seu texto. Reflexão sobre música está diretamente relacionado à evolução das idéias e da ciência e também é dependente das exigências do seu público.

É grande a nossa dívida, IMHO, com esses pioneiros da apreciação musical, que com seus bolsos e seus cérebros, bancaram a emergência de um música de altíssima qualidade e distante das necessidades da Igreja.

Sensação e razão

O capítulo 3 tem seu núcleo na transição intelectual vivida por Vicenzo Galilei, de discípulo de Zarlino a primeiro adepto do "temperamento igual". Como Palisca registrou no capítulo anterior, o abandono das idéias pitagóricas produziu novas formas de reflexão teórica sobre a música tendo como objetivo encontrar fórmulas para solucionar o problema criado pela impossibilidade de criar escalas baseadas apenas nos intervalos perfeitos. A impossibilidade aritmética, registrada desde o inicio do século XVI, dava lugar a experimentos com séries, com definições variadas para o semi tom, com suas correspondentes visões filosóficas.

Foi Galileu, antes discípulo de Zarlino, que se rendeu à necessidade de considerar o assunto do ponto de vista de seu resultado final - a produção dos sons - e não de sua matriz aritmética. Em várias obras que se sucedem até o final do século XVI, ele sugere uma inversão: com base nas escalas mais agradáveis seria então elaborado o modelo aritmético para a definição dos intervalos.

A abordagem de Galileu teve ainda outro aspecto importante. A análise ultraracionalista ou meramente matemática da música limitava o debate às elites intelecutais, capazes de ler os tratados da Antiguidade e com estudo da matemática. Era comum que os tratados separassem a "música teórica" da "música prática". Não é preciso mencionar que isso tinho o efeito de relegar instrumentista e compositores menos ilustrados ao limbo intelectual. A abordagem "experimental" defendida por Galileu permitiria que todos as comunidades sociais da música tivessem algo a dizer.

Harmonia universal

A transição anotada no capítulo 2 é bem interessante: ela registra o abandono gradual das teorias musicais construídas sobre a herança da Antiguidade.

A elevação do nível intelectual dos estudos sobre música levou ao abandono das teorias platônicas e pitagóricas sobre música. A prática mostrava que limitar a análise aos intervalos perfeitos era falso do ponto de vista matemático e pobre, quando comparada à produção musical corrente. A legitimação do tratamento dos intervalos "imperfeitos" agregava uma complexidade muito maior ao discurso sobre a música, desvinculado já das mitologias do passado. Era evidente àquela altura, por exemplo, que não havia nada como música dos planetas e nem suas órbitas refletiam relações matemáticas perfeitas.

Essa elevação do nível intelectual do debate sobre música também levou ao abandono de outra herança da Antiguidade: a idéia de que o músico por meio de uma inspiração mística tinha acesso à ordem secreta da Natureza. Em 1587, por exemplo, Lorenzo Malespini já refutava ponto a ponto a tese do 'furor poético'. A construção da poesia e da música pode exigir inspiração, mas materializa-se por meio de instrumentos técnicos e racionais.

A recusa do passado platônico e pitagórico, portanto, não implicou o abandono das teorias racionalistas. Só que elas passaram a ser objeto de uma consideração científica. Ou seja, que tipo afinal de harmonia universal sustenta a apreciação e a criação da Música.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Música como história intelectual

É um resumo de leitura de Claude Palisca. Música e Idéias nos séculos XVI e XVII. University of Illinois, 2006.

Capítulo 1 - Mudança musical e história intelectual: para Palisca o debate que bem conhecemos sobre a natureza da música (é apenas sensação ou reflete uma ordem maior?) do Ocidente começa com a redescoberta dos textos da Antiguidade no Renascimento, de Boécio a Aristoxeno. Nesse sentido, há um duplo problema. Primeiro, o debate é importado pelas elites intelectuais, ele não emerge da prática corrente da música, que segue "popular" ou religiosa em larga medida. Segundo, não se fazia a menor idéia de como era a música da Antiguidade. O debate transcorria, em boa medida, no plano teórico, com a discussão de modelos cuja manifestação propriamente musical era desconhecida.

A solução termina sendo buscada em outra visão transmitida pela Antiguidade: a música como instrumento de expressão de valores e emoções. Podia ser tanto na versão positiva da tragédia, como na visão crítica de "A República". Ou seja, se a Antiguidade tinha razão em registrar o profundo impacto da música sobre a ordem social (como queria Platão) ou sobre a emoção estética em geral (no modelo da Poética de Aristóteles), era porque a música transmite "mensagens" e o objetivo da investigação intelectual sobre a música era em condições essa mensagem é transmitida.

No final do século XVI, portanto, começa a catalogação e discussão dos instrumentos "retórico-musicais", ou seja, o estabelecimento do paralelismo entre a composição e a execução com o domínio da produção de emoções. Nota-se facilmente, na origem do debate sobre a natureza da música, sua matriz estritamente racionalista. Se as especulações de fundo pitagórico foram abandonadas gradualmente ao longo do século XVI, elas foram substituídas por teorias da expressão.

É interessante comparar com a situação da ciência geográfica. A obra de Ptolomeu sobre geografia foi publicada mais ou menos na mesma época que ocorria a descoberta da América e da costa da África, por volta do final do século XV. Descreviam mundos completamente diferentes, embaralhando a mente dos cientistas da Renascença: afinal, o que é válido, a sagrada herança da Antiguidade ou os dados que emergiam das grandes navegações e da astronomia da época?

No caso da Música, o que era mais válido, as sugestões pitagóricas hiper racionalistas da Antiguidade ou prática caótica e os conceitos religiosos da Idade Média? A teoria aristotélica da catarse pela música ou a adoração a Deus por meio do canto? A música vem da Musa ou da Mente?